— Nós vivemos afogados no pecado. Por mais que nos esforcemos para viver uma vida de retidão, tudo o que conseguimos é submergir ainda mais no mar da maldade, da promiscuidade e das coisas que desagradam a Deus. Ainda assim, o nosso pai celestial é bom. Ele sempre nos dá uma segunda chance. Uma nova oportunidade de fazer o bem e garantir a nossa parte no paraíso.
Alfredo Aquino – ou padre Alfredo, como era mais conhecido – fez uma pausa e olhou para as pessoas a sua frente. Alguns fieis abaixaram a cabeça, como se intimidados pelo olhar do religioso. Outros choravam, consumidos pela culpa, por algo que haviam feito e que sabiam que não estava de acordo com a Lei de Deus.
O fato é que eles não estavam ali para um missa. Aquele era um grupo de oração, o chamado Encontro de Cura e Libertação, que acontecia todas as segundas, quartas e sextas, das 14h até as 17h, na Paróquia Nossa Senhora de Loreto. Uma espécie de “curso intensivo” para quem precisava se livrar do pecado. E as turmas estavam sempre cheias.
— Mas vocês não devem temer o poder do inimigo. – o padre continuou, depois da breve pausa – Deus está conosco e é a Ele que vocês devem direcionar o seu temor. Só assim atingirão o perdão pelos pecados. Só assim vocês serão escolhidos. Só assim receberão as suas bênçãos que cairão do céu…
Nesse exato momento, o sino no alto da torre do relógio badalou cinco vezes e o padre parou de falar. Porém, logo que este som desapareceu, um outro som ecoou no ar. Não demorou até que todos entendessem do se tratava. Era um grito. Um murmúrio agudo, áspero e desesperador, como se viesse de alguém com a vida por um fio. E de fato vinha.
As pessoas olharam pela gigantesca porta escancarada a tempo de ver o vulto cortando o ar. O grito foi finalizado com um grito ainda maior e depois um estrondo. Um corpo despencou dos céus e se chocou com violência no chão cinzento, espalhando sangue, pedaços de carne e ossos para todos os lados.
O pânico tomou conta da Casa de Deus. Enquanto alguns fieis choravam tapando os próprios olhos e os dos filhos, outros vomitavam. Alguns tentavam fugir pelas portas laterais, mas elas estavam trancadas. A maioria deles ainda conseguiu ouvir o último suspiro do homem que havia caído do céu.
— Perdão… Meu Deus… – ele disse. Então a sua voz se calou para sempre
***
A perita criminal Maria Clara descobriu o corpo lentamente. Rocha se aproximou e observou com cuidado, ao mesmo tempo que acendia um cigarro. Depois guardou o isqueiro no bolso e pegou do mesmo lugar um bloco de notas e uma caneta.
— Então ele caiu do céu? – disse o investigador, com um certo tom de desdém.
— É o que estão dizendo. – a perita respondeu – Pelo estado das lesões, não há dúvida de que ele caiu de uma grande altura. Também é certo que ele estava vivo no momento da queda. Algumas das testemunhas o ouviram gritar enquanto caia.
— Talvez o céu esteja cheio demais e Deus decidiu mandar alguns de volta…
— Rocha… – Maria franziu o cenho – Tenha um pouco de respeito.
— Quem é o responsável pela igreja? – Rocha perguntou, depois de anotar no bloco que a vítima morreu devido à queda.
— O padre Alfredo. Ele está ali.
— Algum outro indício de violência?
— Talvez. Preciso mandar algumas amostras para o laboratório para ter certeza, mas, como os pés e as mãos da vítima estão amarrados, é provável que ele tenha sofrido algum tipo de agressão física antes da queda. Não encontrei nenhum indício de ferimento por arma de fogo.
— Obrigado. – o investigador caminhou até o padre, que estava sentado em um banco de madeira. Havia um pequeno jardim no pátio em frente à igreja e os clérigos haviam aproveitado o espaço, colocando alguns bancos de praça e um pequeno chafariz. O padre se levantou e o cumprimentou quando ele se aproximou. – Eu sou o investigador Pedro Rocha e vou conduzir este caso.
— Muito prazer, policial.
— O senhor conhecia a vítima?
— Sim, claro… – o padre respondeu. Ele parecia muito abalado – É o padre Fernando. Oh, meu Deus, não tem como não reconhecer, mesmo ele estando… Daquele jeito. Só ele usa aqueles tênis…
Rocha olhou para trás e viu um dos pés da vítima que o vento teimava em mostrar, mesmo com o plástico que Maria Clara havia colocado sobre o corpo. O tênis verde fluorescente era muito marcante mesmo.
— Entendo. Quando foi a última vez que o senhor viu o padre Fernando com vida?
— Hoje pela manhã. Ele sempre saía para correr as sete. Eu o vi sair enquanto realizava as minhas orações, mas não vi a hora em que voltou.
— Ele tinha algum inimigo ou alguém que pudesse desejar a sua morte?
— Não, claro que não. – o padre pareceu se irritar com a pergunta – Ele era um homem de Deus, assim como eu. Nós não temos inimigos. Não vivemos nossas vidas para as coisas desse mundo.
— Pode até ser, mas o seu amigo está morto, padre. – Rocha disse – E eu tenho certeza que foi alguém deste mundo que o matou.
O padre abaixou a cabeça e começou a chorar.
— Certo… – Rocha anotou um número no bloco, arrancou a folha e entregou ao padre – Se conseguir se lembrar de mais alguma coisa, me ligue. Eu vou analisar o telhado agora. Alguém pode me acompanhar?
O investigador seguiu o zelador da paróquia por um corredor estreito que dava acesso a uma longa escadaria de madeira. Rocha subiu os degraus apressadamente, acompanhado de perto por Maria Clara e um outro perito da Polícia Científica.
A escada os colocou diante de uma pequena porta de madeira que, por sua vez, dava acesso a um sótão empoeirado. Dentro dele havia centenas de caixas de papelão, estátuas de santos e anjos e objetos estranhos. Também havia alguns sacos de ração para cachorros e remédios de utilização veterinária. Todo o local era iluminado apenas pelos raios de sol que entravam por uma ampla janela.
— Ele foi jogado daqui? – Rocha perguntou.
— Acreditamos que sim. – Maria respondeu – O assassino precisaria se esforçar muito para subir até o telhado já que não há escadas de acesso fixas. Mas temos certeza que foi por aqui e isso é uma sorte para nós. A poeira nos forneceu muitas pistas. – Ela apontou para os passos visíveis no chão, marcados na grossa camada de pó.
Rocha caminhou até a janela, a abriu e então enfiou a cabeça por entre a abertura, esforçando-se ao máximo para ver a cena do crime. Viu o corpo do padre coberto pelo plástico preto lá embaixo. Certamente ele havia sido jogado por aquela janela. Os policiais acabavam de interrogar os fieis que estavam na igreja no momento da queda e uma pequena multidão de curiosos já se formava atrás das faixas de contenção.
O investigador sentiu uma vertigem e teve certeza de que aquela era a hora de colocar a cabeça de volta para dentro do cômodo. Enquanto voltava, viu os ponteiros do enorme relógio logo abaixo da janela.
— O assassino deve ter tido muito trabalho para fazer com que a vítima não acertasse esses ponteiros. – ele disse enquanto fechava a janela.
— Quer que eu analise o relógio para saber se ele bateu lá? – Maria perguntou.
— Sim.
— Há sinais de luta aqui. – disse o perito que havia subido com eles. Rocha e Maria caminharam até o homem, que estava do outro lado da sala, analisando as marcas no chão.
— O que tem aí, Vicente? – Maria perguntou quando eles chegaram perto.
— Passos por toda parte, além de arranhões no chão, provavelmente causados pelos calçados da vítima ou do agressor. – o perito respondeu – Também encontrei uma marca estranha… É bem provável que seja sangue.
— Peça os exames e me dê uma certeza. – Rocha disse – Preciso voltar para a delegacia.
***
— Rocha! Eu tenho uma bomba pra você. – O perito que entrou na sala segurando uma pasta cheia de papéis não deveria ter mais do que vinte e cinco anos. Rocha não o conhecia muito bem, mas até gostava dele. Era daquele tipo viciado em tecnologia, que passava o dia inteiro com um computador ou um celular na mão. Mas isso era até uma coisa boa, considerando o fato de que seu serviço era exatamente esse.
— Pode dizer, Renato.
— O nome é Ricardo, e não Renato… Mas tudo bem. – o perito já estava acostumado com aquilo – É o seguinte: eu analisei o celular da vítima como você me pediu. Não havia nada demais. Achei alguns sites pornôs no histórico da internet, mas ninguém é de ferro, não é mesmo? Ele era um padre, mas não deixava de ser um homem por isso.
— Vá direto ao ponto, moleque.
— Claro… Ele apagou alguns arquivos recentemente. Vídeos, fotos, mensagens. Eu me esforcei um pouco e consegui recuperar alguns desses arquivos só pra dar uma olhada. E você não faz nem ideia… Eu quase cai de costas com o que encontrei. Olhe você mesmo.
Ele colocou a pasta sobre a mesa. Rocha a abriu e começou a folhear lentamente as imagens impressas.
— Mas que merda! – uma das fotos fez o investigador perder o fôlego.
— Eu falei que era uma bomba.
Na foto, o padre assassinado estava nu, acompanhado de um garoto muito mais novo e, aparentemente, eles estavam tendo relações sexuais. Havia muitas outras fotos parecidas, com outros garotos e garotas de diversas idades. Nenhum deles parecia ser maior de idade.
— Tá explicado o porquê do crime. – Rocha disse.
— Os vídeos recuperados estão num CD dentro da pasta.
— Obrigado, Rogério.
— As ordens. Mas meu nome é Ricardo.
***
— Há quanto tempo você mantinha relações sexuais com o padre Fernando Melo? – Rocha perguntou. O garoto sentado à sua frente era um dos que estavam nas fotos encontradas no celular. Ele costumava auxiliar os clérigos nas missas e nos cultos, trabalhando como o que eles costumavam chamar de coroinha.
— Eu não…
— Vamos ser sinceros um com o outro, garoto. – Rocha disse – Eu vi os vídeos. Sei o que ele fazia com vocês e não estou aqui para julgar ninguém. A única coisa que eu quero é prender o assassino.
— Por que? – o garoto começou a chorar – Por que você quer prender ele? A única coisa que ele fez foi nos salvar daquele… Daquele demônio.
— Por que você não contou que estava sendo abusado para ninguém?
— Quem acreditaria em mim? Todo mundo pensava que ele era um santo. Eu até tentei contar para o padre Alfredo uma vez, mas ele ficou irritado e disse que eu estava inventando. – o garoto respondeu, enquanto limpava os olhos com as mangas da camisa.
— Mais alguém sabia disso?
— Não… Eu acho que não. O zelador quase nos viu uma vez, mas acho que ele não sabia de nada.
— Certo. Onde você estava ontem, as cinco horas da tarde?
— Eu já disse isso para o outro policial.
— Eu não sou o outro policial.
— Estava em casa, estudando. Eu tenho uma prova na semana que vem.
— Você é um garoto bem grande… Quantos anos tem? 16?
— 14.
— Sério?
— Cara… Eu não matei ele. Agradeço a Deus por ele estar morto, mas não fui em quem o matou. Eu juro.
— Tudo bem. Eu acredito em você.
— Posso ir agora?
— Pode. Quando sair, peça para o seu amigo entrar.
O garoto saiu e um outro coroinha entrou. Rocha interrogou quatro deles naquela manhã e todos contaram a mesma história. Diziam que ninguém além deles sabia de nada e que eles não contavam porque sabiam que ninguém acreditaria neles.
O mais velho deles tinha 16 anos e o mais novo tinha 12, mas Rocha tinha certeza de que pelo menos dois tinham força o suficiente para arrastar o corpo do padre e jogá-lo pela janela. Ainda mais se estivessem trabalhando juntos. Só que ainda havia muitos fatos a considerar. Muitas pontas soltas que precisavam ser amarradas antes que ele pudesse formular uma suposição mais apurada.
Depois de falar com os garotos, Rocha também conversou com os seus pais. Estava perto de contar em detalhes o que havia descoberto sobre o padre Fernando, mas alguma coisa o fez mudar de ideia. Um sentimento antigo, quase esquecido em meio ao turbilhão de outros sentimentos quase esquecidos em seu cérebro: amor paterno.
Por mais que tentasse abafar aquela parte de sua vida, ele também era pai e conseguia imaginar como aquelas pessoas se sentiriam ao descobrir que seus filhos estavam sendo abusados há tanto tempo bem diante de seus olhos. E o pior: por um padre, alguém acima de qualquer suspeita.
Aquele era um dia histórico. Pedro Rocha estava com medo de falar alguma coisa que pudesse magoar alguém.
Foi por isso que omitiu todos os detalhes que pode. É claro que eles acabariam descobrindo tudo mais cedo ou mais tarde, mas seria bem melhor se não fosse através dele. E de qualquer forma, não conseguiria nada de útil ao caso com aquelas pessoas. Eram apenas mães e pais comuns do século XXI, escravos de seus smartphones e viciados em seus trabalhos. Tão atarefados que sequer conseguiam enxergar todos os sinais que seus filhos externavam.
Os interrogatórios se estenderam pelo dia todo. Rocha conversou com as testemunhas que participavam do grupo de oração, com alguns dos funcionários da paróquia e com o pior tipo de gente que existe: fanáticos religiosos. Falou com uma dezena deles e todos diziam que o assassinato era uma obra de Satã encarnado. Isso quase o fez pular da janela de sua sala.
Quando a noite chegou e ele finalmente se livrou daquelas pessoas, decidiu convidar Maria Clara para beber alguma coisa. Conversar com ela sempre o ajudava a clarear as ideias. Foram até o Diplomata, o bar que Rocha frequentava desde que se entendia por gente e que não ficava muito longe da delegacia.
— Manda aí o de sempre, Jorge. – ele disse enquanto se sentava no balcão – Pra mim e pra Maria. E traz uns gatos também. Estou morrendo de fome.
O homem do outro lado do balcão acenou positivamente com a cabeça e colocou dois copos pequenos diante deles. Depois encheu cada um dos copos com uma dose caprichada de Jack Daniel’s. Então foi até o freezer e voltou com uma garrafa cerveja e dois copos.
— O Duval falou com você sobre arrumar um novo parceiro? – Maria disse.
— Sim. Ele fala isso todos os dias desde que… Você sabe.
— E o que você acha?
— Eu não acho nada.
— Mas você vai procurar alguém?
— Nem fodendo.
— Sabe que ele vai acabar arrumando alguém pra você, né?
— Ninguém quer trabalhar comigo, Maria. Essa é uma das grandes vantagens de ser quem eu sou. Só você me aguenta.
Ela riu. Rocha bebeu o whisky em um só gole. Depois encheu seu copo de cerveja. Sua garganta ansiava por provar daquele maravilhoso liquido gelado.
— O que você acha desse caso do padre?
— Não sei. Padres sempre foram um pé no meu saco!
— Nossa…
— Sabe o que eu acho? Que eles adoram me tirar do sério! Você tinha que ver o que celebrou o meu casamento. Aquele padre safado quase me deixou maluco. Queria me ensinar a viver com uma mulher e dizia o tempo todo que, em tudo que eu fizesse, eu deveria agradar a Deus… Pro diabo! Ele pensava que eu era idiota pra cair nessas histórias.
— Eu não sabia que você é ateu…
— Ateu? – Rocha pareceu se assustar com o comentário, como se estivesse muito ofendido – Quem disse que eu sou ate? Eu não tenho a menor dúvida sobre a existência de Deus.
— Então eu não entendi mesmo o que você quis dizer…
— É bem simples. Por que eu devo agradar a Deus se ele não está fazendo nada para me agradar também?
— É um raciocínio interessante, mas eu não sei se as coisas funcionam assim, Rocha.
— Pra mim elas funcionam assim e ponto final! Para cada coisa que eu conquistei nessa vida, tive que apanhar feito um cachorro. É por isso que, na minha forma de pensar, a relação com o céu funciona como uma rua de mão dupla. Ele me ajuda e eu ajudo de volta. Ele me agrada e eu agrado de volta.
— Entendi… Eu acho.
— O padre que fez meu casamento não era muito mais velho do que eu e ele tinha passado metade da sua vida dentro de um seminário. Como poderia me ensinar alguma coisa, ainda mais em se tratando de um casamento? Eu já vivia com a Ângela há quase dez anos quando decidimos nos casar. Eu conhecia a vida muito mais do que ele, se você quer saber.
Nessa hora, Jorge retornou da cozinha carregando dois pratos fundos. Em cada um deles havia quatro espetinhos; pedaços de carne bovina e vegetais, que haviam sido fritos em uma vareta de madeira.
— Você já tem algum suspeito? – Maria perguntou, quando viu que Rocha havia acabado de engolir o primeiro pedaço da refeição.
— Talvez. Os coroinhas tinham um bom motivo para matar o cara. Eu conversei com eles e te garanto que dava pra ver o ódio nos olhos de alguns dos moleques. Ódio é um ótimo gatilho.
— É, mas você sabe que o amor é um gatilho muito mais forte, né?
— Então você está me dizendo que foi alguém que amava o padre que jogou ele lá de cima?
— Talvez… – ela respondeu – Mas talvez também seja alguém que amava os coroinhas. Alguém que quisesse livrá-los daqueles abusos horríveis. Algum dos pais deles, talvez. Eles disseram que não contaram, mas os pais podem ter descoberto.
— Eu conversei com todos os pais. Tenho certeza absoluta de que não foi nenhum deles.
— E o outro padre? Não poderia ter sido ele?
— Impossível. Tanto ele quanto a maioria dos pais dos coroinhas estavam na igreja no momento do crime, quando a vítima foi jogada do telhado.
— Mas isso não os impede de ter participado do crime, de alguma forma.
— Com certeza não.
— E então?
— E então que, independentemente de quem tenha feito isso, eu vou descobrir. Ainda tenho que falar com o zelador e com mais algumas das testemunhas, mas isso é só amanhã. Hoje eu só quero esquecer de tudo isso e você deveria fazer o mesmo, não acha? Come isso aí antes que eu tome de você.
No dia seguinte, Rocha voltou até a igreja para falar com o zelador. Até aquele momento, tudo conspirava para que ele fosse o principal suspeito, ao lado de algum dos coroinhas. Ele tinha acesso às chaves de todos cômodos da igreja, além de ser forte o suficiente para realizar o crime. Também não estava na igreja, à vista das testemunhas, no momento do crime.
— Há quantos anos você trabalha aqui? – Rocha perguntou. O zelador estava em pé sobre o altar, esfregando o chão. Junto a ele havia um carrinho com um balde, algumas barras de sabão e frascos de produtos de limpeza.
— Há muito tempo. Já não sei dizer com certeza.
— Entendo. E qual era a sua relação com o padre Fernando?
— Ele era um bom homem. Eu gostava dele…
— Ele era um pedófilo!
— Não! Ele só fez…
— Um dos coroinhas disse que você viu ele sendo abusado e não fez nada. Eu sei que isso é difícil pensar nisso. Talvez você tenha pensado melhor sobre o assunto e achado que precisava tomar uma atitude. Ser o instrumento da Justiça Divina.
— Não, é claro que não! – o zelador começou a chorar.
— Pro diabo! – Rocha se irritou – Será que ninguém nessa igreja consegue conversar comigo por um minuto sem começar a chorar?
— Essa é a casa de Deus! Não diga essas coisas!
— Essa casa de Deus está uma bela de uma zona! – o investigador disse. O zelador se sentou no altar, abaixou a cabeça e voltou a chorar, mas Rocha o pegou pelo braço e fez com que se levantasse – Agora já chega disso. Eu tenho muito o que fazer hoje. Onde você mora?
— Aqui mesmo…
— Onde?
— Nos fundos.
— Me mostre.
Eles caminharam para o lado de trás do altar. Seguiram por um corredor até uma porta larga, que estava trancada. O zelador retirou um molho de chaves do bolso e, depois de procurar a chave por alguns segundos, abriu a porta e eles saíram da igreja. Rocha avistou um quarto minúsculo alguns metros à frente.
— Essa é a minha casa.
— Me mostre por dentro.
O investigador revistou o local detalhadamente. Abriu cada gaveta e revirou cada armário que conseguiu encontrar. Logo em seguida, arrancou o colchão da cama e o furou com seu canivete, para o desespero do zelador. Não achou nada além de algumas cédulas velhas de dinheiro escondidas. Na geladeira, encontrou comida dormida, várias garrafas PET de refrigerante cheias de água e duas formas de gelo no congelador. O pensamento que vinha na cabeça de Rocha era que aquela geladeira era muito parecida com a sua.
Mas, se o interior do eletrodoméstico não trazia nada interessante, o lado de fora preparava algumas surpresas. Mais especificamente a parte de cima dele. Em meio a toda aquela poeira, uma estátua de São Jorge, potes vazios e caixas de remédios vencidos, o investigador encontrou dois frascos maiores, completamente diferentes dos demais.
— O que é isso? – ele perguntou.
— São tranquilizantes.
— Para que?
— Para o cachorro do padre Alfredo. Ele estava tendo umas crises estranhas. Acho que estava muito estressado, porque começou a atacar as pessoas sem nenhum motivo. Um veterinário veio e disse que era pra usar esses sedativos quando ele ficasse muito agitado. Ele deve ter a receita em algum lugar…
— Tudo bem. Deixa isso pra lá.
Rocha guardou os frascos e retornou a busca. Mas, ao fim de tudo, as únicas evidencias que tinha era a de que o zelador precisar limpar mais vezes a sua casa e que ele tinha um péssimo gosto para roupas.
— Mas… Então é assim? – o homem perguntou quando Rocha desistiu de procurar e saiu pela porta da frente acendendo um cigarro – A minha casa vai ficar desse jeito?
— Eu espero que não. – Rocha respondeu – Se você começar a arrumar agora, talvez termine antes do anoitecer.
O investigador atravessou o pequeno gramado, mas dobrou a esquerda ao invés de seguir em frente, rumo a porta da igreja. Parou em frente a um portão de grades de metal e o abriu sem dificuldades. Aquela passagem dava acesso a casa paroquial onde morava o padre Alfredo e o falecido padre Fernando.
Rocha seguiu pelo caminho até se ver diante de uma ampla varanda. Havia três pessoas lá: o padre e dois dos coroinhas que haviam sido interrogados na manhã anterior. Eles tremeram quando viram o investigador se aproximar.
— Você se lembra de mim, padre?
— Claro, investigador. Em que posso ajudá-lo?
— Pra começar, me explique o que esses dois estão fazendo aqui. – Rocha apontou para os coroinhas. Um deles era um de seus principais suspeitos.
— Eles vêm aqui todos os dias. Essa é uma casa paroquial. Um lar de Deus. E se preferir que eu seja mais específico, hoje eles vieram aqui atrás dos conselhos do Nosso Senhor. Esta é uma hora negra para cada um de nós e eles precisam de alguém para auxiliá-los.
— Sei… Eu tenho um assunto muito sério para falar com você, padre.
— Acho que seria melhor se vocês nos deixassem a sós, meninos. – o padre falou. Nesse momento, um dos coroinhas começou a tremer de pavor. Mas, mesmo assim, os garotos se levantaram e se apresaram em sair, entrando na casa.
— Eles moram aqui? – Rocha perguntou.
— Não. Só vem para me ajudar nas tarefas do dia-a-dia. Eu sou um homem velho, investigador. Já não tenho o mesmo vigor de antes para realizar todos os afazeres de uma casa.
— Por que não contrata uma empregada.
— A Santa Igreja não me permite tanto luxo.
— Eu sei como é… Preciso que olhe uma coisa. – Rocha retirou um envelope do casaco e o entregou ao padre. O religioso o abriu e retirou de dentro algumas fotos. As analisou com atenção.
— Pelo amor do Todo Poderoso… – ele disse, finalmente – O que é isso, investigador?
— É o motivo do crime.
— Mas…
— Se quiser o termo técnico, o padre Fernando era um pedófilo. Mas se preferir a minha opinião, ele era um belo de um filho da puta. Essas são só algumas das fotos que achamos no celular dele. Também achamos alguns vídeos, caso tenha dúvidas sobre as fotos.
— Não, não… Isso não é possível! – o padre disse, levando as mãos ao rosto
— Eu juro por Deus que se você começar a chorar eu te dou uma porrada. Eu sei que você é padre e tudo mais, só que eu tenho pressa.
— Certo… – o padre enxugou os olhos – E o que você quer de mim?
— Que me ajude a descobrir quem foi que fez isso.
— Como eu poderia?
— Eu tenho algumas coisas na cabeça. Alguns suspeitos muito fortes. Um deles, se quer saber, está nessa casa, nesse exato momento.
O padre lançou um olhar desesperado para Rocha. Seus olhos se encheram de lágrimas novamente, mas ele foi firme e não deixou que elas escorressem pelo seu rosto. Seu senso moral o obrigava a defender seus coroinhas acima de tudo. Ele confiava cegamente em cada um deles.
— Eu sei o que está insinuando, investigador. Mas eu posso garantir que nenhum dos meninos fez isso com o padre Fernando.
— Só o que eu sei é que ele abusava dos moleques todos os dias, nos últimos três anos, pelo menos. Se isso não é motivo suficiente para matar, eu não sei o que é.
— Nós somos pessoas de bem. Servos de Deus. Trabalhamos para Ele e isso…
— O padre Fernando também era. – o investigador interrompeu – Isso não o impediu de fazer uns bicos pro capeta, não é mesmo?
— Isso é um ultraje!
— Isso é a vida batendo na sua cara, padre. E eu só te digo uma coisa: Ou você me ajuda a colocar o cara que matou o seu companheiro na cadeia ou passo por cima de você. Uma coisa eu te garanto. Eu não perco. Nunca.
Rocha se virou e caminhou até o portão. Quando estava saindo, virou-se para o padre novamente.
— Pode ficar com essas fotos como recordação. Elas te ajudarão a se lembrar do homem de Deus com que você dividia esta bela casa. Ah! Eu também vou aproveitar para procurar melhor nos arquivos recuperados do celular dele… Talvez ache alguma foto sua. Vai saber…
Com isso, deu as costas e caminhou até a viatura.
***
Maria estava entrando em sua sala quando Rocha chegou na delegacia. Ela carregava alguns laudos em uma mão e uma xícara de café na outra.
— Finalmente você chegou. – ela disse quando o investigador se aproximou – Tenho algumas novidades.
— Diga.
— Os laudos iniciais ficaram prontos. A causa da morte foi descrita como sendo traumatismo craniano seguido de múltiplas lesões na coluna. Isso confirma a hipótese de que ele estava vivo no momento da queda.
— Diga algo que eu não sei, Maria.
— Aquela mancha no chão era sêmen. Mas também havia sangue da vítima. Encontramos uma seringa com a agulha quebrada na cena do crime e o legista já encontrou a outra metade da agulha nos restos mortais da vítima. Isso me fez analisar o corpo mais a fundo, em busca de substâncias externas.
— E você encontrou alguma?
— Sim. Encontramos doses muito elevadas de Medetomidina e Tartarato de Butorfanol…
— Por que você não fala em uma língua que eu entenda?
— Sedativos e analgésicos…
— Sei.
— … que são utilizados em cães.
— Não me diga…
— Havia alguns remédios veterinários na cena do crime, mas não encontramos nenhum destes utilizados para sedar a vítima. O assassino deve ter levado com ele, mas acabou se esquecendo da seringa.
— Certamente.
— E sobre os ponteiros do relógio, eu encontrei um pouco de sangue, mas não há indícios de que a vítima tenha se chocado com eles. Provavelmente o sangue pingou enquanto o corpo era colocado para fora da janela.
— Olha só! – Rocha sorriu – Agora sim a coisa ficou interessante.
***
O caso estava praticamente resolvido. O zelador não tinha nem um álibi que provasse onde estava no momento do crime e como se isso não fosse o suficiente, havia os dois frascos de sedativos para cachorro que ele guardava em sua casa. Dois frascos bem peculiares, na verdade: Medetomidina e Tartarato de Butorfanol. Os mesmos encontrados no corpo.
— Por que ele não se desfez dos sedativos? – um dos policiais na viatura disse enquanto eles rumavam para a igreja.
— Porque na vida real as pessoas não são tão detalhistas como nos filmes. – Rocha respondeu – Acho que ele nunca pensou que descobriríamos as substâncias no corpo.
— Você não acha que ele já fugiu uma hora dessas?
— Tenho certeza que não. A vida dele é aquela igreja. Ele não sairia de lá por nada. Por isso, podem considera-lo um provável suicida. Todo cuidado é pouco.
Ao todo, oito policias seguiam em duas viaturas rumo a igreja. Rocha planejava fazer a prisão o quanto antes. Já estava cansado daquele caso. O transito interferiu um pouco, mas chegaram ao destino antes do anoitecer.
Quando os carros pararam em frente ao jardim, Rocha olhou para a torre de onde o padre havia sido jogado. Teve uma surpresa. O zelador estava lá, preso por cabos em uma espécie de balanço de parque infantil, limpando o grande relógio. O investigador olhou aquela cena por alguns instantes, enquanto os policiais se preparavam para sair.
— Puta que pariu! – ele disse, de repente.
— O que houve, Rocha. – outro policial perguntou.
— Acabei de descobrir quem é o assassino.
— Ué… Não foi o zelador?
— Fiquem aqui.
— Mas… Nós não vamos lá para…
— Fiquem aqui!
O investigador saiu da viatura e contornou a igreja, seguindo em direção a casa paroquial. O portão estava trancado, mas ele não teve muitas dificuldades em quebrá-lo com o pé. Com o barulho, o padre e dois coroinhas saíram correndo de dentro da casa, para ver o que estava acontecendo.
— Mas o que…
— Parado aí, padre Alfredo. – Rocha sacou a pistola e a apontou para o religioso – Você está preso pelo assassinato do padre Fernando Melo.
— O que? Do que você está falando?
— Você quase me enganou, padre. Quase mesmo. Eu estava a ponto de prender o zelador.
— Olha, policial… Eu realmente não sei do que você está falando. Eu tenho que celebrar uma missa daqui a pouco e…
— Eu sei como você o matou.
— Pelo amor de Deus, homem! Eu estava na igreja quando tudo aconteceu. Centenas de pessoas podem comprovar isso.
— E eu tenho que te parabenizar por isso. Foi um truque de mestre! Me impressionou muito mesmo.
— Eu já disse que…
— Você descobriu o que ele estava fazendo com os garotos, não foi? E é claro que não podia tolerar isso dentro da sua igreja. Então você foi falar com ele, mas não conseguiu chegar a lugar nenhum. Então você o matou.
— Padre… Do que ele está falando? – um dos coroinhas disse ao ver que os olhos do padre estavam se enchendo de lágrimas.
— Você usou os sedativos para fazer com que ele desmaiasse e é aí que vem a parte interessante. Você não podia simplesmente matá-lo. Tinha que bolar alguma coisa… Mas da onde veio a ideia?
— “Porquanto há uma hora certa e também uma maneira certa de agir para cada situação. O sofrimento de um homem, no entanto, pesa muito sobre ele.” Eclesiastes, capítulo oito, versículo cinco. – o padre disse.
— Há, é claro. Foi por isso que você pensou no relógio. Eu não posso te culpar, padre. Não mesmo. Mas vou ter que te prender mesmo assim. É hora de pagar o preço pelo que fez.
O padre ergueu os braços e Rocha o algemou. Ele caminhou até a viatura sem resistência, diante dos olhos confusos dos coroinhas e das pessoas que passavam na rua. Os policiais também não entenderam nada, mas preferiram não contrariar.
Mais nenhuma lágrima caiu dos olhos do padre.
***
— Olha, Rocha, eu não entendi nada dessa história. – disse o delegado Duval enquanto o investigador saía da sala de interrogatório onde o padre havia sido colocado. Ele foi até o bebedouro e encheu um copo de água.
— Ele usou o relógio. – Rocha respondeu – Uma ideia simples, mas muito eficiente. Venha comigo se quiser entender o resto.
Os dois entraram na sala e se sentaram do outro lado da mesa onde o padre estava. Rocha entregou o copo ao padre, que bebeu lentamente.
— Eu sei como você fez tudo, padre, mas me corrija, se eu estiver errado. – o investigador disse – Você subiu até o depósito para pegar os sedativos para o seu cachorro, já que até aquele momento, eles eram guardados lá, junto com os sacos de ração e tudo mais que eu vi lá em cima. Então você viu o padre Fernando com um dos garotos. O desespero tomou conta do seu corpo, mas você não teve coragem de agir naquele momento. Se escondeu e esperou até que o garoto saísse. Então subiu até lá novamente e o confrontou. Houve uma briga feia e então você perdeu a cabeça. Acertou ele com a seringa do sedativo e ele desmaiou. Você pensou em jogá-lo de lá de cima, mas não queria ser preso e foi então que se lembrou do versículo: “Há uma hora certa e uma maneira certa de agir para cada situação”. Não foi difícil encontrar cordas e fitas ali. Você o amarrou, mas não como nós imaginávamos, para que ele não conseguisse fugir. Você o amarrou num dos ponteiros do relógio da torre. No ponteiro que marca as horas.
— Puta que… – Duval começou a dizer, mas achou melhor se calar.
— Eu imagino como deve ter sido difícil descer aquelas escadas até o relógio com o corpo do padre nas costas, mas, apesar de velho, você é um homem forte e ele era bem magro. – Rocha voltou a dizer – Você tinha que ser rápido, antes que ele acordasse ou que as pessoas começassem a chegar na igreja. Isso colocaria tudo a perder. Você o amarrou atrás do ponteiro, para quem olhasse para o relógio não o enxergasse. A batina preta fazia o favor de esconde-lo ainda mais atrás do ponteiro, que também era preto. Depois disso, era só esperar que o tempo se encarregasse do resto. Literalmente.
— Incrível. – Duval cochichou no ouvido de Rocha.
— Eu acredito que você deve ter amarrado ele por volta das três horas da tarde. O ponteiro estava completamente horizontal. Você teve tempo de descer, levar os frascos de sedativo e pedir ao zelador que os guardasse em sua casa, pois assim teria alguém para receber a culpa caso algo desse errado. E então você foi para o grupo de orações e o celebrou como se nada tivesse acontecido. As horas passavam e o ponteiro ia cada vez mais para baixo. O inevitável aconteceu às cinco horas. O corpo escorregou pelo ponteiro e desabou. Os movimentos bruscos no momento em que o corpo se desprendia devem ter acordado o padre Fernando e foi por isso que todos ouviram o grito. É claro, foi um grito abafado, afinal, ele estava com uma fita na boca. E você tinha um álibi perfeito para o momento da morte, com centenas de testemunhas para confirmá-lo.
— Eu… Eu não queria matar ninguém. – o padre disse – Eu só queria que ele fosse embora da minha paróquia. Eu não ia tolerar aquele tipo de coisa. Mas ele me ofendeu. Ofendeu a mim e aos meus meninos. Eu perdi a cabeça. A seringa estava próxima e foi a primeira coisa que eu vi. Eu pensei que ele já estava morto, mas enquanto pensava no que fazer com o corpo, vi que ele ainda estava respirando. Eu só fiz o que tive que fazer, policial.
— Eu tenho certeza disso. Ele merecia morrer.
— Rocha… – disse Duval, cutucando o investigador.
— Ele merecia morrer, mas isso não te dava o direito de matá-lo. – Rocha corrigiu.
— Eu aceito o meu destino. Deus está comigo e a justiça foi feita. – o padre respondeu.
***
— Então foi o padre? – disse Maria, enquanto levava o copo de cerveja até a boca.
— Foi. – Rocha respondeu – Eu te disse, Maria. Padres não são pessoas confiáveis.
— E como você descobriu tudo isso?
— Em partes, foi você que me ajudou. O amor é um gatilho mais forte do que o ódio, lembra? Ele estava motivado pelo amor paternal que sentia pelos meninos, os coroinhas, e não pelo ódio que sentia pelo outro padre. Eu não tinha visto isso até o momento em que você falou. Depois tudo foi se encaixando. O zelador jamais faria algo que o tirasse da igreja. Ele parecia mais devoto do que qualquer um com quem eu conversei. E os coroinhas, apesar de parecerem capazes, eles estavam mais amedrontados do que dispostos a se vingar. Não me sobraram muitas alternativas. Isso facilitou as coisas.
— Ainda assim, você foi incrível.
— Eu sei.
— Menos, Rocha… – ela riu. Ele retribuiu o sorriso – Vamos fazer um brinde então.
— Um brinde? A que?
— A providência divina!
— Ah, meu Deus…
— Tudo tem uma hora, Rocha. Tudo acontece na hora em que tem que acontecer.
— Exatamente! E o que tem que acontecer nesse exato momento e que aquele safado do Jorge me traga logo meus espetinhos!
Maria riu. Em sua mente, porém, ela aguardava outra coisa além da comida. Algo que a consumia por dentro. Algo que só uma pessoa poderia entregar a ela. Amor.
— Um dia, Pedro… – sussurrou e esvaziou o copo de cerveja.