Quando olho no espelho, o primeiro sentimento que me invade é a vergonha. E não só da minha falta de beleza ou de alguma imperfeição estética. Eu tenho vergonha de ser branco. E os motivos que me envergonham são muitos.
Eu tenho vergonha de ser branco e ser pobre. Porque, quando as coisas dão certo na minha vida, logo me informam que eu fui privilegiado. É só por isso que eu consegui estar onde estou. Nada mais importa. As noites que eu passei acordado, lutando, querendo morrer, não foram importantes. As vezes que eu deixei de comer para trabalhar e as coisas que eu deixei para trás para me tornar o que eu sou também não. Seu eu fosse de outra cor, minha luta seria justa. Minha causa seria nobre, fosse ela qual fosse, uma vez que eu lutaria contra o mundo racista e injusto, que favorece brancos. Mas eu sou branco, e o racista sou eu.
E é por isso que eu tenho vergonha de ser branco e achar que eu não sou racista. Porque todo mundo saber que todo branco é automaticamente racista. Até eu, é claro, mesmo que eu não admita. Se eu não fosse branco, poderia dizer abertamente que gostaria de ser julgado pelas minhas atitudes, não pela cor da minha pele. E isso seria glorioso, libertador, revigorante. Mas eu sou branco e só digo isso porque sou privilegiado. Todas as minhas atitudes têm segundas intenções, mesmo que eu não sabia.
Eu tenho vergonha de ser branco porque eu não sou rico. Eu não nasci em berço de ouro e nunca tive dinheiro para nada, mas o sistema sempre me ajudou. Se eu não fosse branco, poderia dizer que sofri, que passei fome, que trabalhei quinze horas por dia, vendendo sorvete, lavando banheiros e empacotando compras. Mas eu sou branco e as minhas dores não são tão doloridas assim. Eu vivo a vida no modo easy. As coisas sempre foram fáceis para mim. Mesmo quando eu precisava escolher entre almoçar ou jantar, eu estava sendo privilegiado, já que muitos não brancos não tinham nem o almoço e nem a janta.
Eu tenho vergonha de ser branco porque eu estudei em escolas públicas. E quando eu digo isso, as pessoas não acreditam, por que brancos só estudam em escolas particulares. Brancos tem vantagem. Mas, se eu não fosse branco, diriam que eu sou um herói quando eu dissesse que fui o único da minha turma a chegar em uma faculdade. Mas sou branco, então sou um privilegiado. Não tem nada ver com o tanto que eu estudei ou com as coisas que eu abri mão. Os outros brancos, meus amigos de sala que também não chegaram na faculdade, são preguiçosos, porque tudo seria mais fácil para eles.
Eu tenho vergonha de ser branco porque eu tenho um emprego. Porque muitos não brancos ficaram desempregados para que eu exercesse o meu privilégio. E eu sou privilegiado. Porque sou branco. Pura e simplesmente. O que aprendi ao longo de anos para conquista a vaga não importa. Porque alguns negros tentaram antes de mim e não conseguiram. E isso não tem a ver com as suas características sócias e suas habilidades. Tem a ver com a cor da pele. Unicamente. Sempre.
Mas eu sou branco, então sou privilegiado.
Eu tenho vergonha de ser branco porque eu não posso crescer por conta própria. Mesmo que eu não note, a mão invisível do sistema se molda para atender aos meus desejos e me favorecer. Então, quando eu consigo vencer, não é porque lutei, mas porque o sistema me ajudou. Sempre. Se eu não fosse branco, poderia comemorar. Poderia dizer que foi mérito meu. Que o trabalho valeu a pena. Que sou um vencedor. Mas eu sou branco e tudo é fácil pra mim. Sou privilegiado.
Eu tenho vergonha de ser branco porque eu não posso rir. Nunca. Porque todas as minhas piadas são ofensivas a algum grupo étnico, mesmo que eu nem saiba que ele existe. Todo gesto que faço para não brancos é uma ofensa disfarçada, que está impregnada no meu ser por causa de anos e mais anos de racismo velado. E toda história que eu conto é falsa. Se eu não fosse branco, poderia me orgulhar das vitórias dos meus antepassados. Poderia chamar aos meus iguais de “meu povo” sem soar racista. Mas eu sou branco e meus antepassados eram senhores de escravos. Até aqueles que eram escravos também.
Mais do que vergonha, eu tenho raiva de ser branco. Por esse simples fato de que isso invalida todos os meus argumentos, já que os brancos escravizaram e mataram milhares de pretos, amarelos e vermelhos em todos as partes do mundo. Eles também foram mortos e escravizados por essas raças, mas isso não importa. O que importa é que, seu eu não fosse branco, minha luta seria válida. Enquanto os africanos ainda se escravizavam na África, os brancos já haviam abolido a escravidão na Europa. Mas isso não importa. Sou um senhor de escravos. Porque sou branco. E preconceituoso. E racista. E privilegiado, é claro.
Eu tenho vergonha de ser branco porque eu não me enquadro no discurso geral propagado por todos, até pelos outros brancos, quando se referem aos que são brancos como eu. Mesmo que ninguém acredite. Não odeio pretos, nem amarelos, nem vermelhos. Nem brancos. Só tenho vergonha.
Eu tenho vergonha de ser branco porque eu achei que todos concordavam com o pastor quando ele dizia que sonhava com o dia em que “todos os vales seriam elevados e todas as montanhas e encostas seriam niveladas”. E ainda mais vergonha por ter acreditado quando ele dizia que sonhava com o dia em que “os filhos dos descendentes de escravos e os filhos dos descendentes de donos de escravos poderiam se sentar juntos à mesa da fraternidade”.
Eu tenho vergonha de ser branco porque vivo em um mundo dividido em cores, como num tabuleiro de War. Um mundo onde a minha cor é a vilã. Mesmo que eu, como pessoa, não seja. Onde eu não tenho lugar de fala. Porque outros brancos foram terríveis e cruéis no passado e ainda são hoje em dia, então eu não posso mais falar. Nem reclamar. Porque minha reclamação é injusta se compara aos que sofrem mais. E eu nem sofro de verdade. Eu sou privilegiado. E eu não preciso falar, porque outros como eu já falaram demais.
Eu tenho vergonha de ser branco porque sou burro demais a ponto de achar que a cor não é importante. E por insistir que não digo isso porque sou branco. E privilegiado.
E é por isso que me arrisco a cometer o crime de dizer mais uma vez que, assim como o pastor, eu tenho um sonho. Um sonho de não ser mais branco. Nem preto. Nem amarelo. Nem vermelho. E nem outras cores. Só ser eu. Eu só. Nada mais.