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    Por que escrever um livro?

    Olá, meus amigos. Sei que já faz tempo que não escrevo nada, mas estou de volta e o conteúdo que vou apresentar é muito especial. Trata-se dos motivos que nos levam a escrever um livro.

    Se você pensar com atenção, notará que esta é a pergunta chave. E também notará que ela deverá ser respondida por você e não por mim. Afinal, poucas coisas são tão pessoais. Mas, para que você entenda melhor os seus motivos e consiga extrair tudo que eles têm para te oferecer, explicarei o que me levou a escrever todos livros que produzi ao longo da minha vida.

    É importante que você saiba que o motivo que leva uma pessoa a escrever um livro (ou uma música, ou um roteiro de teatro/cinema) geralmente é um só. Ainda que a pessoa escreva centenas de livros ao longo de sua vida, cada um com um foco e uma temática especifica, o motivo primordial atrás de cada um deles será sempre o mesmo.

    Eu escrevo porque quero deixar minha marca no universo.

    Pode parecer clichê – e de fato é – mas este é o meu propósito. Há motivos que são braços deste motivo principal, mas o foco é sempre um: eu quero ensinar o que aprendi ao longo dos anos para o máximo de pessoas que puder e quero mudar e tocar a vida delas da mesma forma que muitas pessoas que vieram antes de mim mudaram e tocaram a minha vida.

    Como eu disse, há motivos paralelos. Eu escrevi meu primeiro protótipo de livro, um plágio de O Senhor dos Anéis, por dois motivos. Primeiro, porque eu adorava Fantasia Medieval e não possuía nenhum livro desse gênero. Acredite, eles eram difíceis de encontrar alguns anos atrás. Segundo, escrevi porque queria ter certeza de que eu era mesmo capaz de escrever. Queria provar para mim mesmo que eu podia contar uma história através de um texto escrito. E, como eu já disse, pela insistência nos processos errados, quase me convenci de que eu não era capaz.

    Mas posso dizer que fui bem-sucedido no meu intento. Embora apenas duas pessoas além de mim tenham lido O Reino de Fogo, o livro em questão, eu cheguei a completar dois cadernos de 96 folhas num espaço de poucos dias. Nunca escrevi o final da história, mas poder ler algo que eu mesmo havia escrito me bastou. Isso foi suficiente para provar que eu era mesmo capaz e que realmente valia a pena investir naquele sonho. Foi só então que eu resolvi que seria escritor.

    Para facilitar a compreensão, vou dividir o assunto em dois tópicos: A Ideia Primordial e a Ideia Central.

    A Ideia Primordial

    Pense comigo. O que te leva a querer escrever. O que te inspira de verdade? Quando você fecha os olhos e sonha com uma carreira brilhante, com reconhecimento mundial, com pessoas gritando o seu nome, o que você acha que seria capaz de te levar até lá?

    O que te faz ser tão louco a ponto de querer ser escritor em país onde, aparentemente, cada vez as pessoas se interessam menos por livros e pela cultura, de uma forma geral? O que te faz sentir borboletas no estômago quando pensa em, um dia, poder viver plenamente apenas dos seus livros? Independente de qual seja a sua resposta, nós demos um nome a ela: A Ideia Primordial.

    Não importa quanto livros você escreva. Salvo raríssimas exceções, sua Idea Primordial será sempre a mesma e ela te manterá focado quando tudo parecer dar errado. Ela vai te posicionar no caminho dos seus sonhos. O simples fato de ter um proposito, um norte, já tornará o seu processo de escrita muito mais eficiente. Faça o teste, se não acredita.

    Eu escrevo para deixar minha marca no universo. E você?

    A Ideia Central

    Assim como você deve ter um bom motivo para querer ser escritor, você deve ter um motivo especial para querer escrever cada um de seus livros, individualmente. E esse motivo, geralmente, está tão intrínseco na sua mente, tão oculto no seu ser, que acaba passando despercebido durante o processo de escrita.

    Mas ele está lá e se você conseguir percebê-lo e entendê-lo, poderá seguir por caminhos que jamais imaginaria de uma outra forma. Você terá um norte. Um rumo que poderá seguir sempre que estiver perdido. Esse objetivo principal de cada livro eu chamo de A Ideia Central.

    Acompanhe o exemplo de enredo (ou argumento) de um livro:

    Um homem tem problemas com bebidas. Ele é um excelente pai, mas quando bebe, fica descontrolado e bate na mulher e no filho. Seu primogênito, depois de anos e anos vendo o pai beber, cresce e se torna alcoólatra. Ao chegar aos 25 anos, o filho bate o carro, após beber muito numa festa, e morre. O pai, extremamente abatido e frustrado, acaba se convencendo de que a bebida é o vilão da história.

    Qual a Ideia Central deste livro?

    O álcool faz muito mal e pode destruir uma família.

    Esta imagem é clara e direta, embora o autor não a exponha com todas as letras. Mas também poderia ser “cuidado com seus atos, você que é pai, pois seus filhos veem você como um molde e se espelham no que você faz”. Em ambos os casos, a opinião do autor, a Ideia Central do livro, está presente na trama, embora ele não precise citá-la.

    Tenha isso em mente quando for iniciar seus próximos livros. Quanto mais definida for a Ideia Central, desde o argumento inicial, mais acertado será o seu trabalho ao trazê-lo ao mundo.

    Mas não confunda a Ideia Central com a Moral da história. Você não precisa dar lição para ninguém com seus escritos, embora não seja proibido fazê-lo. A Ideia Central é, antes de tudo, sua maior aliada para a resolução dos seus problemas de enredo.

    Entenda que ela precisa ser clara e visível apenas para você. Se você não quiser demonstrá-la, o leitor não precisa conhecê-la. Vamos considerar que, no exemplo acima, o autor quisesse passar uma outra mensagem e não aquelas que identificamos. Talvez ele esteja dizendo que um homem não pode fazer tudo que os outros fazem. Um homem precisa de opinião própria.

    Esse é uma Ideia Central realista que pode ter inspirado o autor, mas o público não precisa saber disso. Ou então, precisa chegar até ela sozinho. A história continua fazendo sentido, mas agora temos outras possibilidades de conflito e resolução. O grande trunfo dos livros é a liberdade que eles oferecem aos leitores e você deve usar isso ao seu favor. Surpreenda-o a cada página.


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    Estas mentiras que você está contando estão impedindo que você se transforme em um grande escritor

    Mentir é natural. Mentimos o tempo inteiro e por diversos motivos, indo desde a simples vontade de prosperar até a necessidade de impedir que nossos entes queridos se machuquem. É sério. Quando você diz “eu estou bem”, mesmo que esteja ardendo em febre, você está mentindo.

    Dessa forma, é natural que escritores também mintam, você não concorda? Não quando criam suas histórias – que não deixam de ser mentiras bem contadas – mas também para si próprios, seja se iludindo com sonhos impossíveis, seja se menosprezando quando não há necessidade.

    Por muito tempo, eu olhei no espelho depois de horas na frente do computador e repeti “eu nunca serei um escritor de verdade” ou “escritores não ganham dinheiro no Brasil” e até mesmo “escrever não é um emprego de verdade”. Eu estava mentindo, embora não soubesse disso. E essas mesmas mentiras que eu sempre repetia, hoje em dia, vejo outros aspirantes a escritores dizendo pelos blogs e páginas da internet que visito.

    O problema é que elas acabam impedindo que muitos bons escritores alcancem o patamar que merecem. Muitos acabam até mesmo desistindo da profissão. Sei do que falo, porque faltou muito pouco para que isso acontecesse comigo.

    Foi para tentar amenizar esse problema que eu escrevi este texto. Para te afastar das principais mentiras que os escritores costumam dizer para si próprios. Vamos a elas:

    1. Estrutura e prazo são inimigos da criatividade

    Esta mentira eu ouço muitos jovens escritores dizendo. Na cabeça de algumas pessoas, é impossível escrever algo bom e criativo se houver um prazo para terminar e se a história for previamente estruturada de alguma forma. Mas isso é uma grande idiotice.

    Uma casa precisa ser planejada antes de ser construída. Uma música precisa ser composta antes de ser tocada. Uma peça precisa ser ensaiada antes de ser apresentada. Da mesma forma, um bom livro – geralmente – precisa ser estruturado antes de ser escrito.

    Alguns autores gostam de soltar a imaginação – por assim dizer – e escrever sem rumo. Tolkien é um desses autores. Mas este é o método mais difícil que existe. Apenas escritores excepcionais se dão bem seguindo essa fórmula. O próprio Tolkien demorou quase duas décadas para escrever “O Senhor dos Anéis”, simplesmente por não saber como encerrar aquela história. O resultado foi fantástico, mas se ele não fosse tão dedicado, poderia ter abandonado o projeto.

    Se você quer ser um grande escritor, precisa entender que criatividade, estrutura, prazo e organização andam lado a lado. Se você não consegue seguir prazos, jamais será um escritor publicado. Isso é fato. A criatividade é empírica. Ela pode ser aperfeiçoada com estudo e trabalho duro e você deve ter isso sempre em mente.

    2. Eu não preciso ler um romance para escrever um romance

    Se auto-diminuir é um erro grave. Mas se superestimar é um erro ainda maior. Escrever é difícil. Escrever bem é muito, mas muito mais difícil e não está ligado unicamente ao bom uso do português. Para se tornar um bom escritor você vai ter que passar horas e horas escrevendo e, é claro, lendo muito.

    Vou te dar um exemplo. Eu adoro rock, como muita gente faz. Uma das minhas bandas preferidas é o Angra, uma banda brasileira que toca um tipo de heavy metal chamado “Metal Melódico”. Esse estilo musical é conhecido pela sua alta dificuldade técnica. Eu toco guitarra há mais de quinze anos e até hoje não consigo tocar a maioria das músicas do Angra com perfeição. Por que?

    Por que os músicos da banda possuem muitos e muitos anos de experiência.

    A banda existe há mais de 20 anos e quase todos os integrantes tocam há mais de 30 anos. Como eu poderia me igualar a eles? Não posso. A não ser que eu fosse um asiático superdotado, jamais conseguiria me igualar a eles com tão pouco tempo de estudo, ainda que sejam mais de quinze anos.

    O mesmo vale para os escritores. Se você está escrevendo seu primeiro conto de terror hoje, não espere que ele seja tão bom quanto o último livro escrito pelo Stephen King ou tão apavorante quanto os contos do HP Lovecraft. Eles passaram anos e anos aprimorando suas técnicas, lendo muitos autores de diversos gêneros para criar seus próprios estilos. Você precisará passar pelo mesmo caminho se quiser ser tão bom – ou até melhor – do que eles.

    3. A história é minha e eu posso fazer o que eu quiser

    Essa é a mentira mais comum… E, provavelmente, a mais frustrante de todas elas. Você pode fazer o que quiser com a sua história, é claro, mas se quiser que o seu livro seja publicado um dia, vai ter que abrir uma série de exceções. Muitas delas influenciaram muito nos rumos que seus personagens irão tomar.

    Muitas pessoas colocarão a colher em seu trabalho e algumas delas estarão corretas no que estiverem dizendo. Nem todas, é claro, mas alguns profissionais como editores, copidesques, leitores críticos, agentes literários – e muitos outros do mercado literário – possuem opiniões que serão de grande valia para você.

    4. Eu posso fazer tudo sozinho

    Não! Definitivamente não. Você não pode fazer tudo sozinho. Simples assim.

    Grandes sites de autopublicação como a Amazon, o Clube de Autores e o Lulu são ótimas opções para os jovens escritores, mas também podem ser uma grande armadilha se você não estiver completamente preparado para se aventurar nesse mundo.

    Editores não existem só para fazer firula. Eles estão aí porque são necessários.

    O feedback da sua obra é importantíssimo. De preferência para pessoas gabaritadas, no mínimo que gostem de ler o gênero do seu livro e que serão sinceras com você. Fuja de pessoas que só irão te destruir e fuja ainda mais daqueles que só dirão o que você quer ouvir. Este feedback sincero irá te ajudar a deixar a sua história ainda melhor e apontará uma direção quando você sair do curso.

    5. Uma história pode ser qualquer coisa

    Essa mentira é muito contada, principalmente por quem gosta de escrever livros de “arte”. Sei que existe um grande preconceito da minha parte nesse ponto, mas essa é a verdade nua e crua. Sabe aqueles filmes que mostram apenas uma gota de tinta escorrendo na parede? É disso que estou falando.

    Uma história tem que ser muito mais do que apenas isso. Ela precisa de participações e de um objetivo. Ela precisa passar algum tipo de experiência, algum tipo de emoção plena para o leitor. Uma história não é só conflito, mas ela precisa dele. Nunca se esqueça disso.

    Basicamente, uma história é: o protagonista que quer alguma coisa, um antagonista que fica no caminho entre o protagonista e o que ele quer e uma jornada que se segue por causa disso. Qualquer coisa menor do que isso não é uma história de verdade.

    ***

    Bem, basicamente é isso.

    Essa são apenas algumas das mentiras que os escritores gostam de contar para si próprios, mas infelizmente existem muitas outras, que eu abordarei nos próximos dias. O importante, na verdade, é estar ciente dos erros que cometemos. Só assim podemos deixar de comete-los.

    Até breve e boa escrita para você!

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    Como construir sua audiência?

    Muito mais importante do que ter seu livro publicado é ter alguém interessado em lê-lo. Caso contrário, você apenas desperdiçou o seu precioso tempo escrevendo e realizando todas as fases que constituem o processo de publicação. Você precisa de público. De leitores. De audiência. Essa é a palavra mais correta, pois ela define os seus leitores em tempos de internet, com os quais você pode interagir através do livro em si, de vídeos, de podcasts, de posts em blogs e muitos outros lugares.

    Como escrever um livro: Todos os vídeos da série “Estrutura”

    Olá, pessoa. Aqui é o Matheus Prado e seja muito bem-vindo ao meu site.

    Hoje finalizei minha série sobre estrutura literária. São cinco vídeos curtinhos, que vão fazer toda a diferença quando você for planejar seu próximo livro. Então decidi organizá-los neste post, para facilitar a sua vida. Confira abaixo e não se esqueça de deixar nos comentários a sua opinião. Ela é muito importante para mim!

    Star Wars – A força despertou em mim

    Nunca fui fã apaixonado por Star Wars. Isso é claro, não é culpa da série de filmes em si, mas sim minha. Vi na época errada. Já havia me fascinado com coisas que vieram depois e, mesmo sabendo que estas mesmas coisas – talvez – ­jamais tivessem existido se Star Wars não tivesse vindo antes, preferi me apegar mais a elas do que ao precursor.

    Aprenda de uma vez como “mostrar” uma cena para os seus leitores sem soar irritante

    Em cursos, oficinas e até mesmo em blogs pela internet, um dos pontos que as pessoas mais falam é sobre “mostrar, não dizer”. Mas o problema é que ninguém explica muito bem como isso deve ser feito. Esse é um dos erros mais comuns dos jovens escritores, para não dizer o mais comum. Mas, felizmente, também é muito fácil de corrigir.

    O objetivo desse post é tentar explicar um pouco da técnica de mostrar ao invés de dizer. Confira o exemplo abaixo:

    Maria parou o carro e abriu as janelas. De onde estava, conseguia ver o vendedor de lanches do outro lado da rua ao mesmo tempo em que ele discutia com um dos seus raros clientes. Mesmo estando a alguns metros de distância, ela conseguia sentir o cheiro do Ketchup. Os gritos do cliente quebravam o silencio monótono do fim de tarde.

    O que você conseguiu perceber lendo o texto acima? Repare bem. Todos os verbos usados dizendo o que Maria sente e vê ao invés de mostrar ao leitor para que ele possa ver e experimentar essas sensações com ela.

    Cada vez que você for escrever que um personagem viu/ouviu/sentiu alguma coisa, tente reformular a frase para mostrar ao leitor exatamente o que acontece quando o personagem está vendo/ouvindo/sentindo. Fazer isso parece muito mais difícil do que é, na verdade.

    Na maioria dos casos, você só precisará fazer alguns recortes nas frases e substituir algumas palavras. A diferença é sutil, mas pode gerar resultados surpreendentes. Confira o novo exemplo para entender bem o que eu estou falando:

    Maria parou o carro e abriu as janelas. Quando girou a chave e olhou para o outro lado da rua, a única coisa que conseguiu ver foi o vendedor de lanches, que discutia como a única pessoa além dele naquele lugar. “Assim você acaba comigo, cara. Qual é o seu problema? Acha que eu sou milionário?” o homem gritou. “Esse é o preço e sempre foi assim. Eu não tenho culpa se você não tem dinheiro.” O vendedor respondeu. O cheiro adocicado do Ketchup flutuava no ar, atravessando a rua e enchendo a cabeça de Maria com memórias de infância. A noite estava chegando, mas o seu trabalho estava apenas no início.

    Conseguiu entender a diferença? O simples acréscimo do diálogo entre o vendedor e o cliente já cria um clima e faz com que o leitor preste atenção no que virá a seguir. E a descrição do cheiro do ketchup, ligado as memórias de infância da personagem pode despertar memórias no próprio leitor, fazendo-o se importar com a cena.

    Essas mudanças simples podem deixar os seus textos muito mais ricos, mas você também precisa entender que isso não é uma regra. Você não precisa sair alterando todos os seus textos para adaptá-los a este modelo. Tudo vai depender do que você quer transmitir. O segredo está na observação constante, na leitura compulsiva e na revisão dos seus textos.

    Sempre que possível, tente reescrevê-los de uma forma diferente e compare qual transmite melhor as suas ideias. Qual causa mais sensações. Se puder, peça para alguém ler e te explicar quais sensações o texto causou. Isso sempre ajuda.

    E se atente a única regra realmente inquebrável da escrita: Você só será um bom escritor se praticar muito. Escreva sempre que puder. Pratique até não poder mais. Isso fará todo a diferença na sua vida.

    Isso é tudo por hoje. Nós nos vemos em breve com mais algumas dicas. Até breve e boa escrita para você!


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    RESENHA: 1984 | o Grande Irmão está de olho em você

    Imagine um mundo terrível, onde ninguém tem privacidade e onde há um dispositivo automático de vigilância em todas as casas. Este dispositivo registra instantaneamente tudo que acontece com cada pessoa, suas falas, suas atitudes, suas vontades e, dessa forma, todos vivem à mercê de um regime autoritário e controlado.

    Este é o clima proposto por George Orwell, pseudônimo de Eric Arthur Blair, em seu clássico e distópico livro 1984. Vamos começar com a sinopse da obra:

    1984 conta a história de Winston Smith, um homem com uma vida aparentemente insignificante, que recebe a tarefa de perpetuar a propaganda do regime através da falsificação de documentos públicos e da literatura, a fim de que o governo sempre esteja correto no que faz. Smith fica cada vez mais desiludido com sua existência miserável e assim começa uma rebelião contra o sistema.

    Winston é um típico funcionário público. Tem um apartamento, um bom emprego e uma vida comum, para os padrões de Londres do “longínquo” ano de 1984. Seu emprego consiste, basicamente, em apagar partes de jornais e livros antigos, substituindo por novas passagens que favoreçam ao atual (e inquebrável) sistema de governo. Em seguida, os originais são destruídos e a mentira para a ser verdade.

    Logo nas primeiras linhas do texto, você já nota que tem nas mãos um livro inacreditável, com conceitos fantásticos e repleto de mensagens ocultas (outras, nem tanto). E, nesse aspecto, vale citar que Winston trabalha no Ministério da Verdade, um dos muitos ministérios com nomes sugestivos descritos ao longo da história. O Ministério responsável pelas prisões, torturas e assassinatos dos inimigos do estado, por exemplo, se chama Ministério do Amor.

    Dentro de todas as casas, há um peculiar dispositivo. Chamado de teletela no livro, este aparelho que nada mais é do que uma SmartTV gigante, que tem a capacidade de transmitir e receber imagens ao mesmo tempo. Dessa forma, enquanto mostram notícias para população, as teletelas vigiam as atitudes de cada um deles.

    Toda a história se inicia quando Winston descobre que há um canto de sua casa onde a teletela não consegue vê-lo. Um espaço vazio onde deveria estar uma estante de livros. Ali se formou um ponto cego e ele costuma usá-lo para fugir do olhar atento do Grande Irmão. Explico sobre ele um pouco mais a frente.

    O Grande Irmão

    Naquele tempo, não existem leis. Pode parecer confuso e anárquico, mas é a forma mais genial de controle populacional. Afinal, se não existem leis, o Estado pode prender qualquer um pelo motivo que quiser. Ao mesmo tempo é difundida o conceito do crime-ideia, ou, como na versão que possuo, do pensamento-crime. Isso quer dizer que você não precisa cometer o crime para ser considerado culpado por ele. O simples ato de pensar nele e considerar realizá-lo em sua mente já faz de você um criminoso, passível de ser sentenciado com a morte.

    Winston consegue um pequeno caderno e passa a escrever ali suas ideias, a maioria delas, revolucionárias e contrárias ao governo. Em um determinado momento, ele comenta que o que ele escreve não importa. O ato de pensar mal do governo e de pensar em escrever é o maior crime que ele poderia ter cometido. E, cedo ou tarde, eles acabarão descobrindo o que ele fez.

    O fato é que, apesar do todo o controle e de toda a coletividade imposta pelo Partido, Winston se sentia totalmente sozinho em seu mundo. As ideias de revolta estavam cada vez mais fortes e sua mente e isso começa a enlouquece-lo.

    Tudo muda quando ele conhece Júlia. Ela é uma típica “camarada” do Partido, que é militante e elogia as suas doutrinas, mas que vive secretamente em contradição com elas. Ao mesmo tempo, torna-se amante de Winston. Ah, se eu ainda não disse, o sexo é proibido. Só pode ser realizado para fins de reprodução. Dessa forma, Winston comente um novo crime ao envolver-se sexualmente com Júlia.

    Julia e Winston

    Winston também se vê encantado com a figura de O’Brien, um membro do alto escalão do Partido que se mostra favorável as ideias revolucionárias dele. E é justamente neste ponto que a história sofre uma grande reviravolta.

    O Grande Irmão

    Todo o sistema de governo é representado pela figura paternal e onipresente do Grande Irmão. Este agradável e carismático homem de bigode que estampa todos os pôsteres e cartazes do governo é tido como a própria personificação das virtudes do Partido. Mas o fato é que ele nunca foi visto pessoalmente por ninguém. Ainda assim, é cultuado religiosamente pelos membros do Partido.

    Do outro lado, como inimigo público número um, temos a imagem de Emmanuel Goldstein. Ele era um dos principais membros do Partido até revoltar-se contra o Grande Irmão. E, assim como o próprio Grande Irmão, Goldstein nunca foi visto. O livro nos faz crer que, se ele realmente existiu, provavelmente já está morto há muito tempo. O mais provável é que ambos tenham sido criados para fins de propaganda.

    Estes dois personagens representam algo incrível. Uma técnica de persuasão muito utilizada por empresas nos dias de hoje. Pense comigo: é muito mais fácil amar ou odiar alguma coisa se existir uma imagem que represente aquela coisa. É muito mais fácil amar o Partido amando o Grande Irmão do que simplesmente amando as ideias dissimilas em cartazes. É mais fácil odiar todos que forem contra o Partido odiando alguém que lidere estes revolucionários.

    Até mesmo a ideia do ódio é bem trabalhada. Durante dois minutos por dia, a imagem de Goldstein é exibida nos telões para que todos externem seu ódio por ele. Dessa forma, o ódio e a revolta contida em cada um deles é direcionada para um único lugar. Para o lugar que o Partido decidir.

    Nos pôsteres do Partido, vemos a imagem do Grande Irmão seguida da frase:

    BIG BROTHER IS WATCHING YOU (O GRANDE IRMÃO ESTÁ TE OBSERVANDO)

    Podemos interpretá-la de várias formas. Ao mesmo tempo que transmite uma mensagem otimista, não esconde que o Partido vigia cada pessoa constantemente. A primeira versão que li traduzia a frase como “O Grande Irmão zela por ti”. Eu particularmente, não acho adequada, pois ela anula os múltiplos significados propostos pelo autor. Na versão atual que possuo, usaram “O Grande Irmão está de olho em você”. Pra mim, esta e a tradução mais correta.

    Novafala

    Um dos conceitos mais geniais do livro certamente é a novafala. Este novo idioma que, pouco a pouco, substitui o idioma comum, tem uma peculiaridade muito interessante: com o passar do tempo ele fica menor.

    Qualquer idioma conhecido fica maior conforme os anos passam. Novas palavras são inseridas, vindas das mais diversas referencias. Já no novafala, a cada nova edição do Dicionário, menos palavras constam. Essa é uma ótima forma de controlar o pensamento das pessoas. Afinal, se você não sabe como se referir a um sentimento ou a uma ideia, não pode pensar neles. E se você não pensa num ato, não pode planejá-lo nem realiza-lo.

    Quando estivesse finalmente completa, a novafala poderia impedir a expressão de qualquer opinião contrária ao partido.

    É da novafala que vem a ideia famosíssima do Duplipensar, um conceito incrivelmente bem desenvolvido que diz que é possível que uma pessoa possa conviver simultaneamente com duas crenças opostas e aceitar ambas. Por exemplo, todos aceitam os nomes dos Ministérios, que representam exatamente o contrário do que sugerem. O Ministério da Verdade, no qual Winston trabalha, nada faz além de mentir, alterando a verdade de documentos.

    Pontos importantes do livro

    Em 1984 há apenas três nações importantes, sendo que duas delas sempre estão guerra.

    • Oceania – É o maior dos impérios. Winston vive aqui. O Partido governa toda a Oceania, América, Islândia, Reino Unido Irlanda e grande parte do sul da África.
    • Eurásia – É o segundo maior império e consiste de toda a Europa (exceto Islândia, Reino Unido e Irlanda), quase toda a Rússia e pequena parte do resto da Ásia.
    • Lestásia – É o menor império e consiste de países orientais como China, Japão, Coreia, parte da Índia e algumas nações vizinhas.

    Outros territórios, como o norte da África, o centro e o Sudeste da Ásia e a Antártica permanecem em disputa.

    A sociedade se divide em 3 classes:

    • Alta – Grande Irmão e Partido Interno (2%)
    • Média – Partido Externo (13%)
    • Baixa – Proles (85%)

    Outro ponto peculiar e totalmente interessante são os Ministérios, que são as principais representações do Partido. São encarregados, cada um da sua forma, de manter a paz e harmonia das ideologias do Partido. São eles:

    Ministério da Verdade (em Novafala: Miniver)

    É onde Winstons trabalha. Ele é responsável pela alteração de documentos e literatura que possam servir de referência ao passado, de forma que ele sempre condiga com o que o Partido diz ser verdade atualmente. Seguindo essa lógica, o Partido é infalível, pois nunca errou.

    Ministério da Paz (em Novafala: Minipaz)

    É responsável pela Guerra. Mantendo a Guerra contra os inimigos da Oceânia, que podem ser tanto a Lestásia quanto a Eurásia. Depende da situação. A Guerra apresentada no livro é usada de forma permanente para manutenção dos ânimos da população num ponto ideal. Uma forma muito eficiente de domínio.

    Ministério da Pujança (em Novafala: Minipuja)

    É responsável pela economia. Divulga boletins de produção exagerados fazendo toda a população achar que o país vai bem. Entretanto, seus números de nada contribuem para o bem-estar da camada mais baixa da população de Oceania, a prole.

    Ministério do Amor (em Novafala: Minamor)

    É responsável por manter a lei e a ordem. Ele lida com quem se vira contra o Partido, julgando, torturando e fazendo constantes lavagens cerebrais. Para o Ministério, não basta eliminar a oposição, é preciso convertê-la. O prédio onde está localizado é uma verdadeira fortaleza, sem janelas. Seus enclausurados não tem a menor noção de tempo e espaço, sendo este mais um instrumento para a lavagem cerebral dos dissidentes do regime.

    Curiosidades

    Orwell finalizou o livro em 1948, enquanto sofria de um quadro crítico de tuberculose. Ele enviou o texto final do livro para seus editores em 4 de dezembro de 1948, sendo que o mesmo só foi publicado em 8 de junho de 1949. Por esse motivo, muita gente acredita que o título foi escolhido unicamente através da inversão de 48 para 84.

    Em 1989 (o ano do meu nascimento ^^), 1984 já havia sido traduzido para mais de 65 idiomas, mais do que qualquer outro romance de um único autor.

    O primeiro título do livro era O Último Homem da Europa.

    O livro foi adaptado para o cinema duas vezes. A primeira adaptação foi realizada por Michael Anderson em 1956 e trazia Edmond O’Brien no papel principal, Jan Sterling como Júlia, Donald Pleasence como Parsons e Michael Redgrave como O’Brien. A segunda adaptação foi feita por Michael Radford no próprio ano de 1984, trazendo John Hurt no papel principal, Suzanna Hamilton como Júlia, e Richard Burton, em seu último papel no cinema, como O’Brien.

    O famoso reality show Big Brother foi inspirado pelo livro, como o título sugere. Os criadores quiseram passar a mesma ideia, de pessoas observadas e julgadas por seus atos 24 horas por dia. O espólio de George Orwell processou os criadores e um acordo fora dos tribunais foi fechado.

    Em 1974, cantor David Bowie lançou o álbum “Diamond Dogs”, com músicas fortemente inspiradas pelo livro.

    Em 1984, a Apple lançou um comercial produzido e dirigido por Ridley Scott, consagrado por filmes como Alien (1979) e Blade Runner (1982). O cenário do anúncio é o mundo de 1984, no qual o Grande Irmão reunia a população mentalmente escravizada para sessões diárias de lavagem cerebral.  A Apple, com seu Macintosh, é representada por uma mulher vestindo roupas atléticas que contrastam com a escuridão e que destrói a enorme teletela com um artelo de arremesso. Novamente, o espólio de George Orwell processou a Apple e o comercial foi tirado do ar. Ainda, é considerado um dos mais marcantes na história da publicidade. Clique AQUI para vê-lo.

    Conclusão

    Imagine um mundo terrível, onde ninguém tem privacidade e onde há um dispositivo automático de vigilância em todas as casas. Este dispositivo registra instantaneamente tudo que acontece com cada pessoa, suas falas, suas atitudes, suas vontades e, dessa forma, todos vivem à mercê de um regime autoritário e controlado.

    Na verdade, não precisa imaginar. Você já vive nesse mundo. Só que as teletelas são os computadores, os smartphones e as redes sociais. E ninguém precisa nos obrigar a dizer tudo que estamos fazendo. Nós fazemos isso por livre e espontânea vontade através do facebook e do twitter.

    Parabéns, Orwell. Você não poderia estar mais certo.

    Resenha: Eu sou a Lenda | Nem sempre o inimigo é quem você imagina

    Antes de tudo, quero falar de Richard Matheson, o autor de Eu Sou a Lenda. Caso você não saiba, ele também escreveu algumas das histórias mais conhecidas de todos os tempos, como Em algum lugar do passado e Amor além da vida. Também escreveu roteiros para Star Trek: The Original Series eThe Twilight Zone.

    Matheson morreu dia 23 de junho de 2013. Sua filha, Ali Marie Matheson, escreveu no dia 24 uma mensagem que foi publicada no Facebook:

    O meu amado pai morreu ontem [domingo] em casa, rodeado de pessoas e coisas que amava. Era divertido, brilhante, carinhoso, generoso, criativo e o pai mais maravilhoso do mundo.

    Na série Arquivo X há um senador com o nome de Richard Matheson em homenagem ao escritor e no jogo Silent Hill, há uma rua com seu sobrenome.

    O último homem da Terra

    Talvez, a única memória que o título Eu Sou a Lenda te traga seja relacionada ao filme de 2007 estrelado por Will Smith e pela atriz brasileira Alice Braga. Isso não é de todo mal, afinal, eu gosto bastante do filme. Só fiquei sabendo do livro após assistir ao filme e por esse motivo, serei eternamente grato a ele.

    Mas eu preciso dizer que a única coisa que liga o filme ao livro é o título e o nome do personagem principal. De resto, são histórias COMPLETAMENTE diferentes. E não preciso nem dizer que o livro possui muito mais profundidade e mensagens com (acredite ou não) fortes críticas sociais.

    Ah, esta não é a primeira vez que o livro é adaptado para o cinema. Em 1964 foi gravado o Mortos que Matam e em 1971 saiu A Última Esperança da Terra. Ambos os filmes são mais fiéis ao livro do que a versão de 2007, embora tenham suas licenças poéticas. O livro também inspirou o roteiro do filme de 1968, A Noite dos Mortos vivos, de George Romero.

    Bom, vamos começar com a sinopse do livro:

    Robert Neville é o último da sua raça e, aparentemente, o único humano sobrevivente num mundo infestado por vampiros. Ele reina durante o dia, quando ele pode caçar impunemente. Mas, a noite, os vampiros assumem o controle, obrigando-o a ficar entrincheirado na sua casa, protegido por alhos e espelhos. No entanto, por quanto tempo um último homem conseguirá resistir, quando todos os seres sobre a Terra querem o seu sangue? E qual será o preço que ele deve pagar por sua sobrevivência?

    Não posso continuar sem alertá-lo que esta resenha trará spoilers gigantescos do livro. Isso é imprescindível para as discussões aqui propostas. Mas, antes disso, vamos analisar o contexto do livro.

    Em essência, Eu Sou a Lenda é um livro de vampiros. É um livro extremamente profundo e repleto de mensagens ocultas, mas ainda assim, é uma história de vampiros.

    O protagonista, Robert Neville, é um veterano da Guerra do Panamá que se viu imune a um terrível vírus que transformou todo a população numa horda sanguinária de vampiros. Desta forma, Neville se vê obrigado a fazer o que puder para extinguir os vampiros e, talvez, recomeçar a humanidade.

    Durante o dia, os vampiros entram numa espécie de hibernação profunda. Neville se aproveita disso para invadir as casas onde eles se escondem e matá-los, enfiando estacas em seus peitos. Eles seguem o modelo tradicional de vampiros: não suportam alho, sol, estacas de madeira, prata e nem crucifixos. Algumas das cenas mais interessantes acontecem justamente quando Neville tenta entender o porquê de tudo isso. Ele não acredita que os vampiros temem tais objetos por motivos religiosos e tenta buscar razões cientificas para tudo.

    Durante a noite, ele tenta se proteger em sua casa. Ao contrário do filme, todos os vampiros sabem onde Neville mora no livro. E eles vão lá toda noite para tentar convencê-lo a sair. Eles usam argumentos diversos, desde o ataque até palavras, dizendo que lá fora é melhor. Em uma determinada cena, uma vampira se insinua para ele. O que mostra que eles não carregam os atributos dos zumbis, como visto na adaptação de 2007. Eles pensam e raciocinam, ainda que de forma limitada.

    O medo do diferente

    Toda a história transcorre sobre os medos de Neville. Ele perambula pela cidade durante o dia, explorando-a ao máximo para buscar comida e recursos. Mas o faz também para tentar manter sua humanidade e sua sanidade. Ao mesmo tempo, mata todos os vampiros que puder. Isso é natural para ele. É a melhor coisa a se fazer.

    Mas todos os dias terminam com ele sozinho, acuado e temeroso, rezando para que os vampiros não consigam atravessar suas armadilhas e proteções externas. Eles estão em um número muito maior. Isso mostra a habilidade do autor em criar um clima assustador e claustrofóbico, ainda que Neville tenha o mundo inteiro a sua disposição.

    A solidão é tão grande que Neville quase morre unicamente para salvar um cachorro que vê na rua. Ele está sozinho e precisa interagir com alguém que não seja um vampiro. Mesmo que seja com um cachorro. E também é por isso que ele é facilmente enganado por uma vampira que se passa por humana. Ele está tão cego pelo desespero que acredita nela.

    É neste ponto que a pergunta central do livro surge: O que é normal?

    Conforme a leitura avança, começamos a descobrir que os vampiros estão reorganizando a sociedade. Eles não são mais os seres carnívoros e sem discernimento nos quais Neville acreditava. Eles se agruparam e se organizaram, criaram cargos de liderança e se separam em classes sociais.

    E eles têm um inimigo público: Neville.

    É fácil entende-los: durante o dia, um monstro terrível invade as casas e assassina friamente os moradores indefesos enquanto eles dormem. Este mostro impiedoso não diferencia ninguém. Ele mata todos que sem põem em seu caminho.

    Eles descobriram onde ele morava e tentaram um acordo. Mas o monstro os ignorou completamente. Ele apenas continuava, dia após dia, com sua necessidade de matar.

    Então uma lenda surge. Uma assombração que assusta homens, mulheres e crianças.

    Esta é a mensagem mais profunda proposta por Richard Matheson. Se a humanidade é a raça dominante, os vampiros são vistos como uma “praga”. Logo, Neville não poderia agir de outra forma. Ele precisava matá-los.

    Mas o fato é que Neville, agora, era o último representante da raça humana. Assim sendo, ele era praga e os vampiros eram a raça dominante.

    O trecho abaixo exprime exatamente essa ideia:

    Para eles, Neville era algo desconhecido, que jamais haviam visto antes, pior até do que a doença ao qual haviam se habituado a enfrentar. Ele era um espectro invisível que sobrara como prova da existência dos corpos sem sangue de seus entes queridos. E ele entendeu o que sentiam e não os odiou. A mão direita apertava o envelope com pílulas. Ao menos, o fim não viria violentamente, não seria uma carnificina. Robert Neville olhou para o novo povo sobre a Terra. Sabia que não pertencia àquela gente, sabia que, como os vampiros, ele era o anátema, o terror a ser destruído. E abruptamente, outra ideia nascia, divertindo-o, apesar da dor. Uma gargalhada partiu de sua garganta. Virou-se, apoiando as costas na parede enquanto engolia as pílulas. O círculo se fechava e se reiniciava, pensou sentindo a letargia final tomar conta de seu corpo. Um novo terror nascia com sua morte, uma nova superstição se instalava na fortaleza da eternidade. Eu sou a lenda.

    Conclusão

    A conclusão mais plausível que posso sugerir para o livro Eu Sou a Lenda é a seguinte:

    O livro descreve um mundo que sofreu um grande abalo e que, em razão disso, evoluiu. Mas Robert Neville, o último resquício deste mundo antigo, não conseguiu evoluir com ele.

    Se você apenas assistiu ao filme e se divertiu, recomendo fortemente que leia o livro. A ideia é outra e a mensagem principal também. Mas o filme é uma gota comparado ao oceano que é o livro.

    Vale cada minuto gasto.

    PEDRO ROCHA: O caso do padre que caiu do céu

                — Nós vivemos afogados no pecado. Por mais que nos esforcemos para viver uma vida de retidão, tudo o que conseguimos é submergir ainda mais no mar da maldade, da promiscuidade e das coisas que desagradam a Deus. Ainda assim, o nosso pai celestial é bom. Ele sempre nos dá uma segunda chance. Uma nova oportunidade de fazer o bem e garantir a nossa parte no paraíso.

                Alfredo Aquino – ou padre Alfredo, como era mais conhecido – fez uma pausa e olhou para as pessoas a sua frente. Alguns fieis abaixaram a cabeça, como se intimidados pelo olhar do religioso. Outros choravam, consumidos pela culpa, por algo que haviam feito e que sabiam que não estava de acordo com a Lei de Deus.

                O fato é que eles não estavam ali para um missa. Aquele era um grupo de oração, o chamado Encontro de Cura e Libertação, que acontecia todas as segundas, quartas e sextas, das 14h até as 17h, na Paróquia Nossa Senhora de Loreto. Uma espécie de “curso intensivo” para quem precisava se livrar do pecado. E as turmas estavam sempre cheias.

                — Mas vocês não devem temer o poder do inimigo. – o padre continuou, depois da breve pausa – Deus está conosco e é a Ele que vocês devem direcionar o seu temor. Só assim atingirão o perdão pelos pecados. Só assim vocês serão escolhidos. Só assim receberão as suas bênçãos que cairão do céu…

                Nesse exato momento, o sino no alto da torre do relógio badalou cinco vezes e o padre parou de falar. Porém, logo que este som desapareceu, um outro som ecoou no ar. Não demorou até que todos entendessem do se tratava. Era um grito. Um murmúrio agudo, áspero e desesperador, como se viesse de alguém com a vida por um fio. E de fato vinha.

                As pessoas olharam pela gigantesca porta escancarada a tempo de ver o vulto cortando o ar. O grito foi finalizado com um grito ainda maior e depois um estrondo. Um corpo despencou dos céus e se chocou com violência no chão cinzento, espalhando sangue, pedaços de carne e ossos para todos os lados.

    O pânico tomou conta da Casa de Deus. Enquanto alguns fieis choravam tapando os próprios olhos e os dos filhos, outros vomitavam. Alguns tentavam fugir pelas portas laterais, mas elas estavam trancadas. A maioria deles ainda conseguiu ouvir o último suspiro do homem que havia caído do céu.

    — Perdão… Meu Deus… – ele disse. Então a sua voz se calou para sempre

    ***

                A perita criminal Maria Clara descobriu o corpo lentamente. Rocha se aproximou e observou com cuidado, ao mesmo tempo que acendia um cigarro. Depois guardou o isqueiro no bolso e pegou do mesmo lugar um bloco de notas e uma caneta.

                — Então ele caiu do céu? – disse o investigador, com um certo tom de desdém.

                — É o que estão dizendo. – a perita respondeu – Pelo estado das lesões, não há dúvida de que ele caiu de uma grande altura. Também é certo que ele estava vivo no momento da queda. Algumas das testemunhas o ouviram gritar enquanto caia.

                — Talvez o céu esteja cheio demais e Deus decidiu mandar alguns de volta…

                — Rocha… – Maria franziu o cenho – Tenha um pouco de respeito.

                — Quem é o responsável pela igreja? – Rocha perguntou, depois de anotar no bloco que a vítima morreu devido à queda.

                — O padre Alfredo. Ele está ali.

                — Algum outro indício de violência?

                — Talvez. Preciso mandar algumas amostras para o laboratório para ter certeza, mas, como os pés e as mãos da vítima estão amarrados, é provável que ele tenha sofrido algum tipo de agressão física antes da queda. Não encontrei nenhum indício de ferimento por arma de fogo.

                — Obrigado. – o investigador caminhou até o padre, que estava sentado em um banco de madeira. Havia um pequeno jardim no pátio em frente à igreja e os clérigos haviam aproveitado o espaço, colocando alguns bancos de praça e um pequeno chafariz. O padre se levantou e o cumprimentou quando ele se aproximou. – Eu sou o investigador Pedro Rocha e vou conduzir este caso.

                — Muito prazer, policial.

                — O senhor conhecia a vítima?

                — Sim, claro… – o padre respondeu. Ele parecia muito abalado – É o padre Fernando. Oh, meu Deus, não tem como não reconhecer, mesmo ele estando… Daquele jeito. Só ele usa aqueles tênis…

                Rocha olhou para trás e viu um dos pés da vítima que o vento teimava em mostrar, mesmo com o plástico que Maria Clara havia colocado sobre o corpo. O tênis verde fluorescente era muito marcante mesmo.

                — Entendo. Quando foi a última vez que o senhor viu o padre Fernando com vida?

                — Hoje pela manhã. Ele sempre saía para correr as sete. Eu o vi sair enquanto realizava as minhas orações, mas não vi a hora em que voltou.

                — Ele tinha algum inimigo ou alguém que pudesse desejar a sua morte?

                — Não, claro que não. – o padre pareceu se irritar com a pergunta – Ele era um homem de Deus, assim como eu. Nós não temos inimigos. Não vivemos nossas vidas para as coisas desse mundo.

                — Pode até ser, mas o seu amigo está morto, padre. – Rocha disse – E eu tenho certeza que foi alguém deste mundo que o matou.

                O padre abaixou a cabeça e começou a chorar.

                — Certo… – Rocha anotou um número no bloco, arrancou a folha e entregou ao padre – Se conseguir se lembrar de mais alguma coisa, me ligue. Eu vou analisar o telhado agora. Alguém pode me acompanhar?

                O investigador seguiu o zelador da paróquia por um corredor estreito que dava acesso a uma longa escadaria de madeira. Rocha subiu os degraus apressadamente, acompanhado de perto por Maria Clara e um outro perito da Polícia Científica.

                A escada os colocou diante de uma pequena porta de madeira que, por sua vez, dava acesso a um sótão empoeirado. Dentro dele havia centenas de caixas de papelão, estátuas de santos e anjos e objetos estranhos. Também havia alguns sacos de ração para cachorros e remédios de utilização veterinária. Todo o local era iluminado apenas pelos raios de sol que entravam por uma ampla janela.

                — Ele foi jogado daqui? – Rocha perguntou.

                — Acreditamos que sim. – Maria respondeu – O assassino precisaria se esforçar muito para subir até o telhado já que não há escadas de acesso fixas. Mas temos certeza que foi por aqui e isso é uma sorte para nós. A poeira nos forneceu muitas pistas. – Ela apontou para os passos visíveis no chão, marcados na grossa camada de pó.

                Rocha caminhou até a janela, a abriu e então enfiou a cabeça por entre a abertura, esforçando-se ao máximo para ver a cena do crime. Viu o corpo do padre coberto pelo plástico preto lá embaixo. Certamente ele havia sido jogado por aquela janela. Os policiais acabavam de interrogar os fieis que estavam na igreja no momento da queda e uma pequena multidão de curiosos já se formava atrás das faixas de contenção.

                O investigador sentiu uma vertigem e teve certeza de que aquela era a hora de colocar a cabeça de volta para dentro do cômodo. Enquanto voltava, viu os ponteiros do enorme relógio logo abaixo da janela.

                — O assassino deve ter tido muito trabalho para fazer com que a vítima não acertasse esses ponteiros. – ele disse enquanto fechava a janela.

                — Quer que eu analise o relógio para saber se ele bateu lá? – Maria perguntou.

                — Sim.

                — Há sinais de luta aqui. – disse o perito que havia subido com eles. Rocha e Maria caminharam até o homem, que estava do outro lado da sala, analisando as marcas no chão.

                — O que tem aí, Vicente? – Maria perguntou quando eles chegaram perto.

                — Passos por toda parte, além de arranhões no chão, provavelmente causados pelos calçados da vítima ou do agressor. – o perito respondeu – Também encontrei uma marca estranha… É bem provável que seja sangue.

                — Peça os exames e me dê uma certeza. – Rocha disse – Preciso voltar para a delegacia.

    ***

                — Rocha! Eu tenho uma bomba pra você. – O perito que entrou na sala segurando uma pasta cheia de papéis não deveria ter mais do que vinte e cinco anos. Rocha não o conhecia muito bem, mas até gostava dele. Era daquele tipo viciado em tecnologia, que passava o dia inteiro com um computador ou um celular na mão. Mas isso era até uma coisa boa, considerando o fato de que seu serviço era exatamente esse.

                — Pode dizer, Renato.

                — O nome é Ricardo, e não Renato… Mas tudo bem. – o perito já estava acostumado com aquilo – É o seguinte: eu analisei o celular da vítima como você me pediu. Não havia nada demais. Achei alguns sites pornôs no histórico da internet, mas ninguém é de ferro, não é mesmo? Ele era um padre, mas não deixava de ser um homem por isso.

                — Vá direto ao ponto, moleque.

                — Claro… Ele apagou alguns arquivos recentemente. Vídeos, fotos, mensagens. Eu me esforcei um pouco e consegui recuperar alguns desses arquivos só pra dar uma olhada. E você não faz nem ideia… Eu quase cai de costas com o que encontrei. Olhe você mesmo.

                Ele colocou a pasta sobre a mesa. Rocha a abriu e começou a folhear lentamente as imagens impressas.

                — Mas que merda! – uma das fotos fez o investigador perder o fôlego.

                — Eu falei que era uma bomba.

                Na foto, o padre assassinado estava nu, acompanhado de um garoto muito mais novo e, aparentemente, eles estavam tendo relações sexuais. Havia muitas outras fotos parecidas, com outros garotos e garotas de diversas idades. Nenhum deles parecia ser maior de idade.

                — Tá explicado o porquê do crime. – Rocha disse.

                — Os vídeos recuperados estão num CD dentro da pasta.

                — Obrigado, Rogério.

                — As ordens. Mas meu nome é Ricardo.

    ***

                — Há quanto tempo você mantinha relações sexuais com o padre Fernando Melo? – Rocha perguntou. O garoto sentado à sua frente era um dos que estavam nas fotos encontradas no celular. Ele costumava auxiliar os clérigos nas missas e nos cultos, trabalhando como o que eles costumavam chamar de coroinha.

                — Eu não…

                — Vamos ser sinceros um com o outro, garoto. – Rocha disse – Eu vi os vídeos. Sei o que ele fazia com vocês e não estou aqui para julgar ninguém. A única coisa que eu quero é prender o assassino.

                — Por que? – o garoto começou a chorar – Por que você quer prender ele? A única coisa que ele fez foi nos salvar daquele… Daquele demônio.

                — Por que você não contou que estava sendo abusado para ninguém?

                — Quem acreditaria em mim? Todo mundo pensava que ele era um santo. Eu até tentei contar para o padre Alfredo uma vez, mas ele ficou irritado e disse que eu estava inventando. – o garoto respondeu, enquanto limpava os olhos com as mangas da camisa.

                — Mais alguém sabia disso?

                — Não… Eu acho que não. O zelador quase nos viu uma vez, mas acho que ele não sabia de nada.

                — Certo. Onde você estava ontem, as cinco horas da tarde?

                — Eu já disse isso para o outro policial.

                — Eu não sou o outro policial.

                — Estava em casa, estudando. Eu tenho uma prova na semana que vem.

                — Você é um garoto bem grande… Quantos anos tem? 16?

                — 14.

                — Sério?

                — Cara… Eu não matei ele. Agradeço a Deus por ele estar morto, mas não fui em quem o matou. Eu juro.

                — Tudo bem. Eu acredito em você.

                — Posso ir agora?

                — Pode. Quando sair, peça para o seu amigo entrar.

                O garoto saiu e um outro coroinha entrou. Rocha interrogou quatro deles naquela manhã e todos contaram a mesma história. Diziam que ninguém além deles sabia de nada e que eles não contavam porque sabiam que ninguém acreditaria neles.

    O mais velho deles tinha 16 anos e o mais novo tinha 12, mas Rocha tinha certeza de que pelo menos dois tinham força o suficiente para arrastar o corpo do padre e jogá-lo pela janela. Ainda mais se estivessem trabalhando juntos. Só que ainda havia muitos fatos a considerar. Muitas pontas soltas que precisavam ser amarradas antes que ele pudesse formular uma suposição mais apurada.

                Depois de falar com os garotos, Rocha também conversou com os seus pais. Estava perto de contar em detalhes o que havia descoberto sobre o padre Fernando, mas alguma coisa o fez mudar de ideia. Um sentimento antigo, quase esquecido em meio ao turbilhão de outros sentimentos quase esquecidos em seu cérebro: amor paterno.

                Por mais que tentasse abafar aquela parte de sua vida, ele também era pai e conseguia imaginar como aquelas pessoas se sentiriam ao descobrir que seus filhos estavam sendo abusados há tanto tempo bem diante de seus olhos. E o pior: por um padre, alguém acima de qualquer suspeita.

                Aquele era um dia histórico. Pedro Rocha estava com medo de falar alguma coisa que pudesse magoar alguém.

                Foi por isso que omitiu todos os detalhes que pode. É claro que eles acabariam descobrindo tudo mais cedo ou mais tarde, mas seria bem melhor se não fosse através dele. E de qualquer forma, não conseguiria nada de útil ao caso com aquelas pessoas. Eram apenas mães e pais comuns do século XXI, escravos de seus smartphones e viciados em seus trabalhos. Tão atarefados que sequer conseguiam enxergar todos os sinais que seus filhos externavam.

                Os interrogatórios se estenderam pelo dia todo. Rocha conversou com as testemunhas que participavam do grupo de oração, com alguns dos funcionários da paróquia e com o pior tipo de gente que existe: fanáticos religiosos. Falou com uma dezena deles e todos diziam que o assassinato era uma obra de Satã encarnado. Isso quase o fez pular da janela de sua sala.

    Quando a noite chegou e ele finalmente se livrou daquelas pessoas, decidiu convidar Maria Clara para beber alguma coisa. Conversar com ela sempre o ajudava a clarear as ideias. Foram até o Diplomata, o bar que Rocha frequentava desde que se entendia por gente e que não ficava muito longe da delegacia.

                — Manda aí o de sempre, Jorge. – ele disse enquanto se sentava no balcão – Pra mim e pra Maria. E traz uns gatos também. Estou morrendo de fome.

                O homem do outro lado do balcão acenou positivamente com a cabeça e colocou dois copos pequenos diante deles. Depois encheu cada um dos copos com uma dose caprichada de Jack Daniel’s. Então foi até o freezer e voltou com uma garrafa cerveja e dois copos.

                — O Duval falou com você sobre arrumar um novo parceiro? – Maria disse.

                — Sim. Ele fala isso todos os dias desde que… Você sabe.

                — E o que você acha?

                — Eu não acho nada.

                — Mas você vai procurar alguém?

                — Nem fodendo.

                — Sabe que ele vai acabar arrumando alguém pra você, né?

                — Ninguém quer trabalhar comigo, Maria. Essa é uma das grandes vantagens de ser quem eu sou. Só você me aguenta.

                Ela riu. Rocha bebeu o whisky em um só gole. Depois encheu seu copo de cerveja. Sua garganta ansiava por provar daquele maravilhoso liquido gelado.

                — O que você acha desse caso do padre?

                — Não sei. Padres sempre foram um pé no meu saco!

                — Nossa…

                — Sabe o que eu acho? Que eles adoram me tirar do sério! Você tinha que ver o que celebrou o meu casamento. Aquele padre safado quase me deixou maluco. Queria me ensinar a viver com uma mulher e dizia o tempo todo que, em tudo que eu fizesse, eu deveria agradar a Deus… Pro diabo! Ele pensava que eu era idiota pra cair nessas histórias.

                — Eu não sabia que você é ateu…

                — Ateu? – Rocha pareceu se assustar com o comentário, como se estivesse muito ofendido – Quem disse que eu sou ate? Eu não tenho a menor dúvida sobre a existência de Deus.

                — Então eu não entendi mesmo o que você quis dizer…

                — É bem simples. Por que eu devo agradar a Deus se ele não está fazendo nada para me agradar também?

                — É um raciocínio interessante, mas eu não sei se as coisas funcionam assim, Rocha.

                — Pra mim elas funcionam assim e ponto final! Para cada coisa que eu conquistei nessa vida, tive que apanhar feito um cachorro. É por isso que, na minha forma de pensar, a relação com o céu funciona como uma rua de mão dupla. Ele me ajuda e eu ajudo de volta. Ele me agrada e eu agrado de volta.

                — Entendi… Eu acho.

                — O padre que fez meu casamento não era muito mais velho do que eu e ele tinha passado metade da sua vida dentro de um seminário. Como poderia me ensinar alguma coisa, ainda mais em se tratando de um casamento? Eu já vivia com a Ângela há quase dez anos quando decidimos nos casar. Eu conhecia a vida muito mais do que ele, se você quer saber.

                Nessa hora, Jorge retornou da cozinha carregando dois pratos fundos. Em cada um deles havia quatro espetinhos; pedaços de carne bovina e vegetais, que haviam sido fritos em uma vareta de madeira.

                — Você já tem algum suspeito? – Maria perguntou, quando viu que Rocha havia acabado de engolir o primeiro pedaço da refeição.

                — Talvez. Os coroinhas tinham um bom motivo para matar o cara. Eu conversei com eles e te garanto que dava pra ver o ódio nos olhos de alguns dos moleques. Ódio é um ótimo gatilho.

                — É, mas você sabe que o amor é um gatilho muito mais forte, né?

                — Então você está me dizendo que foi alguém que amava o padre que jogou ele lá de cima?

                — Talvez… – ela respondeu – Mas talvez também seja alguém que amava os coroinhas. Alguém que quisesse livrá-los daqueles abusos horríveis. Algum dos pais deles, talvez. Eles disseram que não contaram, mas os pais podem ter descoberto.

                — Eu conversei com todos os pais. Tenho certeza absoluta de que não foi nenhum deles.

                — E o outro padre? Não poderia ter sido ele?

                — Impossível. Tanto ele quanto a maioria dos pais dos coroinhas estavam na igreja no momento do crime, quando a vítima foi jogada do telhado.

                — Mas isso não os impede de ter participado do crime, de alguma forma.

                — Com certeza não.

                — E então?

                — E então que, independentemente de quem tenha feito isso, eu vou descobrir. Ainda tenho que falar com o zelador e com mais algumas das testemunhas, mas isso é só amanhã. Hoje eu só quero esquecer de tudo isso e você deveria fazer o mesmo, não acha? Come isso aí antes que eu tome de você.

                No dia seguinte, Rocha voltou até a igreja para falar com o zelador. Até aquele momento, tudo conspirava para que ele fosse o principal suspeito, ao lado de algum dos coroinhas. Ele tinha acesso às chaves de todos cômodos da igreja, além de ser forte o suficiente para realizar o crime. Também não estava na igreja, à vista das testemunhas, no momento do crime.

                — Há quantos anos você trabalha aqui? – Rocha perguntou. O zelador estava em pé sobre o altar, esfregando o chão. Junto a ele havia um carrinho com um balde, algumas barras de sabão e frascos de produtos de limpeza.

                — Há muito tempo. Já não sei dizer com certeza.

                — Entendo. E qual era a sua relação com o padre Fernando?

                — Ele era um bom homem. Eu gostava dele…

                — Ele era um pedófilo!

                — Não! Ele só fez…

                — Um dos coroinhas disse que você viu ele sendo abusado e não fez nada. Eu sei que isso é difícil pensar nisso. Talvez você tenha pensado melhor sobre o assunto e achado que precisava tomar uma atitude. Ser o instrumento da Justiça Divina.

                — Não, é claro que não! – o zelador começou a chorar.

                — Pro diabo! – Rocha se irritou – Será que ninguém nessa igreja consegue conversar comigo por um minuto sem começar a chorar?

                — Essa é a casa de Deus! Não diga essas coisas!

                — Essa casa de Deus está uma bela de uma zona! – o investigador disse. O zelador se sentou no altar, abaixou a cabeça e voltou a chorar, mas Rocha o pegou pelo braço e fez com que se levantasse – Agora já chega disso. Eu tenho muito o que fazer hoje. Onde você mora?

                — Aqui mesmo…

    — Onde?

    — Nos fundos.

                — Me mostre.

                Eles caminharam para o lado de trás do altar. Seguiram por um corredor até uma porta larga, que estava trancada. O zelador retirou um molho de chaves do bolso e, depois de procurar a chave por alguns segundos, abriu a porta e eles saíram da igreja. Rocha avistou um quarto minúsculo alguns metros à frente.

                — Essa é a minha casa.

                — Me mostre por dentro.

                O investigador revistou o local detalhadamente. Abriu cada gaveta e revirou cada armário que conseguiu encontrar. Logo em seguida, arrancou o colchão da cama e o furou com seu canivete, para o desespero do zelador. Não achou nada além de algumas cédulas velhas de dinheiro escondidas. Na geladeira, encontrou comida dormida, várias garrafas PET de refrigerante cheias de água e duas formas de gelo no congelador. O pensamento que vinha na cabeça de Rocha era que aquela geladeira era muito parecida com a sua.

                Mas, se o interior do eletrodoméstico não trazia nada interessante, o lado de fora preparava algumas surpresas. Mais especificamente a parte de cima dele. Em meio a toda aquela poeira, uma estátua de São Jorge, potes vazios e caixas de remédios vencidos, o investigador encontrou dois frascos maiores, completamente diferentes dos demais.

                — O que é isso? – ele perguntou.

                — São tranquilizantes.

                — Para que?

                — Para o cachorro do padre Alfredo. Ele estava tendo umas crises estranhas. Acho que estava muito estressado, porque começou a atacar as pessoas sem nenhum motivo. Um veterinário veio e disse que era pra usar esses sedativos quando ele ficasse muito agitado. Ele deve ter a receita em algum lugar…

                  — Tudo bem. Deixa isso pra lá.

                Rocha guardou os frascos e retornou a busca. Mas, ao fim de tudo, as únicas evidencias que tinha era a de que o zelador precisar limpar mais vezes a sua casa e que ele tinha um péssimo gosto para roupas.

    — Mas… Então é assim? – o homem perguntou quando Rocha desistiu de procurar e saiu pela porta da frente acendendo um cigarro – A minha casa vai ficar desse jeito?

                — Eu espero que não. – Rocha respondeu – Se você começar a arrumar agora, talvez termine antes do anoitecer.

                O investigador atravessou o pequeno gramado, mas dobrou a esquerda ao invés de seguir em frente, rumo a porta da igreja. Parou em frente a um portão de grades de metal e o abriu sem dificuldades. Aquela passagem dava acesso a casa paroquial onde morava o padre Alfredo e o falecido padre Fernando.

                Rocha seguiu pelo caminho até se ver diante de uma ampla varanda. Havia três pessoas lá: o padre e dois dos coroinhas que haviam sido interrogados na manhã anterior. Eles tremeram quando viram o investigador se aproximar.

                — Você se lembra de mim, padre?

                — Claro, investigador. Em que posso ajudá-lo?

                — Pra começar, me explique o que esses dois estão fazendo aqui. – Rocha apontou para os coroinhas. Um deles era um de seus principais suspeitos.

                — Eles vêm aqui todos os dias. Essa é uma casa paroquial. Um lar de Deus. E se preferir que eu seja mais específico, hoje eles vieram aqui atrás dos conselhos do Nosso Senhor. Esta é uma hora negra para cada um de nós e eles precisam de alguém para auxiliá-los.

                — Sei… Eu tenho um assunto muito sério para falar com você, padre.

                — Acho que seria melhor se vocês nos deixassem a sós, meninos. – o padre falou. Nesse momento, um dos coroinhas começou a tremer de pavor. Mas, mesmo assim, os garotos se levantaram e se apresaram em sair, entrando na casa.

                — Eles moram aqui? – Rocha perguntou.

                — Não. Só vem para me ajudar nas tarefas do dia-a-dia. Eu sou um homem velho, investigador. Já não tenho o mesmo vigor de antes para realizar todos os afazeres de uma casa.

                — Por que não contrata uma empregada.

                — A Santa Igreja não me permite tanto luxo.

                — Eu sei como é… Preciso que olhe uma coisa. – Rocha retirou um envelope do casaco e o entregou ao padre. O religioso o abriu e retirou de dentro algumas fotos. As analisou com atenção.

                — Pelo amor do Todo Poderoso… – ele disse, finalmente – O que é isso, investigador?

                — É o motivo do crime.

                — Mas…

                — Se quiser o termo técnico, o padre Fernando era um pedófilo. Mas se preferir a minha opinião, ele era um belo de um filho da puta. Essas são só algumas das fotos que achamos no celular dele. Também achamos alguns vídeos, caso tenha dúvidas sobre as fotos.

                — Não, não… Isso não é possível! – o padre disse, levando as mãos ao rosto

                — Eu juro por Deus que se você começar a chorar eu te dou uma porrada. Eu sei que você é padre e tudo mais, só que eu tenho pressa.

                — Certo… – o padre enxugou os olhos – E o que você quer de mim?

                — Que me ajude a descobrir quem foi que fez isso.

                — Como eu poderia?

                — Eu tenho algumas coisas na cabeça. Alguns suspeitos muito fortes. Um deles, se quer saber, está nessa casa, nesse exato momento.

                O padre lançou um olhar desesperado para Rocha. Seus olhos se encheram de lágrimas novamente, mas ele foi firme e não deixou que elas escorressem pelo seu rosto. Seu senso moral o obrigava a defender seus coroinhas acima de tudo. Ele confiava cegamente em cada um deles.

                — Eu sei o que está insinuando, investigador. Mas eu posso garantir que nenhum dos meninos fez isso com o padre Fernando.

                — Só o que eu sei é que ele abusava dos moleques todos os dias, nos últimos três anos, pelo menos. Se isso não é motivo suficiente para matar, eu não sei o que é.

                — Nós somos pessoas de bem. Servos de Deus. Trabalhamos para Ele e isso…

                — O padre Fernando também era. – o investigador interrompeu – Isso não o impediu de fazer uns bicos pro capeta, não é mesmo?

                — Isso é um ultraje!

                — Isso é a vida batendo na sua cara, padre. E eu só te digo uma coisa: Ou você me ajuda a colocar o cara que matou o seu companheiro na cadeia ou passo por cima de você. Uma coisa eu te garanto. Eu não perco. Nunca.

                Rocha se virou e caminhou até o portão. Quando estava saindo, virou-se para o padre novamente.

                — Pode ficar com essas fotos como recordação. Elas te ajudarão a se lembrar do homem de Deus com que você dividia esta bela casa. Ah! Eu também vou aproveitar para procurar melhor nos arquivos recuperados do celular dele… Talvez ache alguma foto sua. Vai saber…

                Com isso, deu as costas e caminhou até a viatura.

    ***

                Maria estava entrando em sua sala quando Rocha chegou na delegacia. Ela carregava alguns laudos em uma mão e uma xícara de café na outra.

                — Finalmente você chegou. – ela disse quando o investigador se aproximou – Tenho algumas novidades.

                — Diga.

                — Os laudos iniciais ficaram prontos. A causa da morte foi descrita como sendo traumatismo craniano seguido de múltiplas lesões na coluna. Isso confirma a hipótese de que ele estava vivo no momento da queda.

                — Diga algo que eu não sei, Maria.

                — Aquela mancha no chão era sêmen. Mas também havia sangue da vítima. Encontramos uma seringa com a agulha quebrada na cena do crime e o legista já encontrou a outra metade da agulha nos restos mortais da vítima. Isso me fez analisar o corpo mais a fundo, em busca de substâncias externas.

    — E você encontrou alguma?

    — Sim. Encontramos doses muito elevadas de Medetomidina e Tartarato de Butorfanol

                — Por que você não fala em uma língua que eu entenda?

                — Sedativos e analgésicos…

                — Sei.

                — … que são utilizados em cães.

                — Não me diga…

                — Havia alguns remédios veterinários na cena do crime, mas não encontramos nenhum destes utilizados para sedar a vítima. O assassino deve ter levado com ele, mas acabou se esquecendo da seringa.

                — Certamente.

                — E sobre os ponteiros do relógio, eu encontrei um pouco de sangue, mas não há indícios de que a vítima tenha se chocado com eles. Provavelmente o sangue pingou enquanto o corpo era colocado para fora da janela.

    — Olha só! – Rocha sorriu – Agora sim a coisa ficou interessante.

    ***

                O caso estava praticamente resolvido. O zelador não tinha nem um álibi que provasse onde estava no momento do crime e como se isso não fosse o suficiente, havia os dois frascos de sedativos para cachorro que ele guardava em sua casa. Dois frascos bem peculiares, na verdade: Medetomidina e Tartarato de Butorfanol. Os mesmos encontrados no corpo.

                — Por que ele não se desfez dos sedativos? – um dos policiais na viatura disse enquanto eles rumavam para a igreja.

                — Porque na vida real as pessoas não são tão detalhistas como nos filmes. – Rocha respondeu – Acho que ele nunca pensou que descobriríamos as substâncias no corpo.

                — Você não acha que ele já fugiu uma hora dessas?

                — Tenho certeza que não. A vida dele é aquela igreja. Ele não sairia de lá por nada. Por isso, podem considera-lo um provável suicida. Todo cuidado é pouco.

                Ao todo, oito policias seguiam em duas viaturas rumo a igreja. Rocha planejava fazer a prisão o quanto antes. Já estava cansado daquele caso. O transito interferiu um pouco, mas chegaram ao destino antes do anoitecer.

                Quando os carros pararam em frente ao jardim, Rocha olhou para a torre de onde o padre havia sido jogado. Teve uma surpresa. O zelador estava lá, preso por cabos em uma espécie de balanço de parque infantil, limpando o grande relógio. O investigador olhou aquela cena por alguns instantes, enquanto os policiais se preparavam para sair.

                — Puta que pariu! – ele disse, de repente.

                — O que houve, Rocha. – outro policial perguntou.

                — Acabei de descobrir quem é o assassino.

                — Ué… Não foi o zelador?

                — Fiquem aqui.

                — Mas… Nós não vamos lá para…

                — Fiquem aqui!

                O investigador saiu da viatura e contornou a igreja, seguindo em direção a casa paroquial. O portão estava trancado, mas ele não teve muitas dificuldades em quebrá-lo com o pé. Com o barulho, o padre e dois coroinhas saíram correndo de dentro da casa, para ver o que estava acontecendo.

                — Mas o que…

                — Parado aí, padre Alfredo. – Rocha sacou a pistola e a apontou para o religioso – Você está preso pelo assassinato do padre Fernando Melo.

                — O que? Do que você está falando?

                — Você quase me enganou, padre. Quase mesmo. Eu estava a ponto de prender o zelador.

                — Olha, policial… Eu realmente não sei do que você está falando. Eu tenho que celebrar uma missa daqui a pouco e…

                — Eu sei como você o matou.

                — Pelo amor de Deus, homem! Eu estava na igreja quando tudo aconteceu. Centenas de pessoas podem comprovar isso.

                — E eu tenho que te parabenizar por isso. Foi um truque de mestre! Me impressionou muito mesmo.

                — Eu já disse que…

                — Você descobriu o que ele estava fazendo com os garotos, não foi? E é claro que não podia tolerar isso dentro da sua igreja. Então você foi falar com ele, mas não conseguiu chegar a lugar nenhum. Então você o matou.

                — Padre… Do que ele está falando? – um dos coroinhas disse ao ver que os olhos do padre estavam se enchendo de lágrimas.

                — Você usou os sedativos para fazer com que ele desmaiasse e é aí que vem a parte interessante. Você não podia simplesmente matá-lo. Tinha que bolar alguma coisa… Mas da onde veio a ideia?

                — “Porquanto há uma hora certa e também uma maneira certa de agir para cada situação. O sofrimento de um homem, no entanto, pesa muito sobre ele.” Eclesiastes, capítulo oito, versículo cinco. – o padre disse.

                — Há, é claro. Foi por isso que você pensou no relógio. Eu não posso te culpar, padre. Não mesmo. Mas vou ter que te prender mesmo assim. É hora de pagar o preço pelo que fez.

                O padre ergueu os braços e Rocha o algemou. Ele caminhou até a viatura sem resistência, diante dos olhos confusos dos coroinhas e das pessoas que passavam na rua. Os policiais também não entenderam nada, mas preferiram não contrariar.

                Mais nenhuma lágrima caiu dos olhos do padre.

    ***

                 — Olha, Rocha, eu não entendi nada dessa história. – disse o delegado Duval enquanto o investigador saía da sala de interrogatório onde o padre havia sido colocado. Ele foi até o bebedouro e encheu um copo de água.

                — Ele usou o relógio. – Rocha respondeu – Uma ideia simples, mas muito eficiente. Venha comigo se quiser entender o resto.

                Os dois entraram na sala e se sentaram do outro lado da mesa onde o padre estava. Rocha entregou o copo ao padre, que bebeu lentamente.

                — Eu sei como você fez tudo, padre, mas me corrija, se eu estiver errado. – o investigador disse – Você subiu até o depósito para pegar os sedativos para o seu cachorro, já que até aquele momento, eles eram guardados lá, junto com os sacos de ração e tudo mais que eu vi lá em cima. Então você viu o padre Fernando com um dos garotos. O desespero tomou conta do seu corpo, mas você não teve coragem de agir naquele momento. Se escondeu e esperou até que o garoto saísse. Então subiu até lá novamente e o confrontou. Houve uma briga feia e então você perdeu a cabeça. Acertou ele com a seringa do sedativo e ele desmaiou. Você pensou em jogá-lo de lá de cima, mas não queria ser preso e foi então que se lembrou do versículo: “Há uma hora certa e uma maneira certa de agir para cada situação”. Não foi difícil encontrar cordas e fitas ali. Você o amarrou, mas não como nós imaginávamos, para que ele não conseguisse fugir. Você o amarrou num dos ponteiros do relógio da torre. No ponteiro que marca as horas.

                — Puta que… – Duval começou a dizer, mas achou melhor se calar.

                — Eu imagino como deve ter sido difícil descer aquelas escadas até o relógio com o corpo do padre nas costas, mas, apesar de velho, você é um homem forte e ele era bem magro. – Rocha voltou a dizer – Você tinha que ser rápido, antes que ele acordasse ou que as pessoas começassem a chegar na igreja. Isso colocaria tudo a perder. Você o amarrou atrás do ponteiro, para quem olhasse para o relógio não o enxergasse. A batina preta fazia o favor de esconde-lo ainda mais atrás do ponteiro, que também era preto. Depois disso, era só esperar que o tempo se encarregasse do resto. Literalmente.

                — Incrível. – Duval cochichou no ouvido de Rocha.

                — Eu acredito que você deve ter amarrado ele por volta das três horas da tarde. O ponteiro estava completamente horizontal. Você teve tempo de descer, levar os frascos de sedativo e pedir ao zelador que os guardasse em sua casa, pois assim teria alguém para receber a culpa caso algo desse errado. E então você foi para o grupo de orações e o celebrou como se nada tivesse acontecido. As horas passavam e o ponteiro ia cada vez mais para baixo. O inevitável aconteceu às cinco horas. O corpo escorregou pelo ponteiro e desabou. Os movimentos bruscos no momento em que o corpo se desprendia devem ter acordado o padre Fernando e foi por isso que todos ouviram o grito. É claro, foi um grito abafado, afinal, ele estava com uma fita na boca. E você tinha um álibi perfeito para o momento da morte, com centenas de testemunhas para confirmá-lo.

                — Eu… Eu não queria matar ninguém. – o padre disse – Eu só queria que ele fosse embora da minha paróquia. Eu não ia tolerar aquele tipo de coisa. Mas ele me ofendeu. Ofendeu a mim e aos meus meninos. Eu perdi a cabeça. A seringa estava próxima e foi a primeira coisa que eu vi. Eu pensei que ele já estava morto, mas enquanto pensava no que fazer com o corpo, vi que ele ainda estava respirando. Eu só fiz o que tive que fazer, policial.

                — Eu tenho certeza disso. Ele merecia morrer.

                — Rocha… – disse Duval, cutucando o investigador.

                — Ele merecia morrer, mas isso não te dava o direito de matá-lo. – Rocha corrigiu.

                — Eu aceito o meu destino. Deus está comigo e a justiça foi feita. – o padre respondeu.

    ***

                — Então foi o padre? – disse Maria, enquanto levava o copo de cerveja até a boca.

                — Foi. – Rocha respondeu – Eu te disse, Maria. Padres não são pessoas confiáveis.

                — E como você descobriu tudo isso?

                — Em partes, foi você que me ajudou. O amor é um gatilho mais forte do que o ódio, lembra? Ele estava motivado pelo amor paternal que sentia pelos meninos, os coroinhas, e não pelo ódio que sentia pelo outro padre. Eu não tinha visto isso até o momento em que você falou. Depois tudo foi se encaixando. O zelador jamais faria algo que o tirasse da igreja. Ele parecia mais devoto do que qualquer um com quem eu conversei. E os coroinhas, apesar de parecerem capazes, eles estavam mais amedrontados do que dispostos a se vingar. Não me sobraram muitas alternativas. Isso facilitou as coisas.

                — Ainda assim, você foi incrível.

                — Eu sei.

                — Menos, Rocha… – ela riu. Ele retribuiu o sorriso – Vamos fazer um brinde então.

                — Um brinde? A que?

                — A providência divina!

                — Ah, meu Deus…

                — Tudo tem uma hora, Rocha. Tudo acontece na hora em que tem que acontecer.

                — Exatamente! E o que tem que acontecer nesse exato momento e que aquele safado do Jorge me traga logo meus espetinhos!

                Maria riu. Em sua mente, porém, ela aguardava outra coisa além da comida. Algo que a consumia por dentro. Algo que só uma pessoa poderia entregar a ela. Amor.

                — Um dia, Pedro… – sussurrou e esvaziou o copo de cerveja.